Análise ao Acórdão 088/20 STA
Em face do presente acórdão, podemos
adiantar os seguintes factos:
Recorrente – A. - intenta uma intimação
para a protecção de direitos, liberdades e garantias contra a Requerida -
Presidência de Conselho de Ministros – com base nos artigos 24º, 1, a), iii)
ETAF + 109º e ss. CPTA, pedindo:
i) A declaração de inconstitucionalidade, com efeitos
circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas da
Resolução de Conselho de Ministros nº 55-A/2020 e de quaisquer normas análogas
que viessem a ser aprovadas por renovação do conteúdo da mencionada Resolução;
ii) A condenação da Presidência de Conselho de Ministros a
exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais
autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerente e as pessoas que
com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade
jusfundamental de reunião.
Em resposta ao pedido ilustrado, a
Presidência do Conselho de Ministros apresentou a sua defesa por:
·
Exceção – (1) alegando a falta de jurisdição dos
tribunais administrativos e fiscais; (2) ilegitimidade passiva da Presidência
do Conselho de Ministros; (3) impropriedade do meio processual; (4)
incompetência hierárquica do STA para decidir do segundo pedido;
·
Impugnação – (5) sustentando a conformidade
constitucional das normas impugnadas.
O requerido veio
adiantar que “O pedido formulado pela requerente não pode ser conhecido pelo Supremo
Tribunal Administrativo, pois a norma do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, em que o
mesmo se fundamenta, não admite um tal pedido, conclusão que se alcança, seja a
partir da interpretação da norma em conformidade com a CRP, seja por
desaplicação desta norma com o fundamento de a mesma violar a reserva de
jurisdição constitucional”.
Ora, em primeiro
lugar, cumpre realçar que nem sempre se admitiu a impugnação jurisdicional direta
de normas administrativas, nomeadamente pela especial autoridade (majestas) que
estas emanam, logo não deveriam ser postos em causa pelos Tribunais. No
entanto, pelas novas exigências propugnadas pelos princípios da legalidade e
juridicidade administrativas, a par do aumento de garantias dos administrados,
começou a achar-se que, de facto, existem normas que são directamente lesivas
dos direitos e interesses dos particulares. Assim, o legislador ordinário
encarregou-se de transpor este novo entendimento para diplomas, como o Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais (1984) e a Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos (1985) que previam um conjunto de meios processuais
de impugnação jurisdicional direta de normas administrativas e, mais tarde
surgiu na revisão constitucional de 1997 o artigo 268º, 5 CRP
constitucionalizando o que já estava assente no corpo normativo ordinário.
Com efeito, o regime
actualmente previsto para a impugnação contenciosa direta encontra-se previsto
nos artigos 72º e ss CPTA. No nosso caso, em particular, iremos atentar
especificamente ao previsto no artigo 73º, 2 CPTA referente à declaração de
ilegalidade sem força obrigatória geral. Ou seja, de acordo com este preceito,
os efeitos do caso julgado são restritos ao caso concreto, e pode ser pedida a
mesma por “Quem seja directamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a
sê-lo em momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa”. Por
norma imediatamente operativa entende-se as normas que não dependem de um ato
administrativo ou jurisdicional para produzirem os seus efeitos.
Todavia, a
interpretação do artigo73º, 2 CPTA e a sua conformidade com a CRP veio a
conhecer um amplo debate doutrinário.
Por um lado, temos o
prof. Vasco Pereira da Silva a adiantar que este norma, ao permitir ao autor
invocar a inconstitucionalidade da norma impugnada e, consequentemente, os
tribunais declararem a norma ilegal com efeitos circunscritos à situação do
interessado, subtraindo-o ao seu âmbito de aplicação vem gerar instabilidade no
sistema jurídico. Efectivamente, ao admitir que a sentença de um tribunal possa
declarar a ilegalidade de uma norma jurídica, mas simultaneamente, deixa-la
subsistir na ordem jurídica, é posta em causa a unidade e coerência do sistema
assim como a certeza e segurança do ordenamento jurídico a luz do Estado de
Direito.
Todavia, o artigo
73º, 2 CPTA revela-se o único meio processual mobilizado pela Requerente
passível de assegurar a efectividade do 268º, 5 CRP “a qual é também uma norma
constitucional dotada de aplicabilidade directa, por consubstanciar um direito
análogo a direitos, liberdades e garantias dos administrados”.
Ora, conclui o STA
que “como estamos face a
um pedido de declaração de inconstitucionalidade com efeitos pessoais ou
circunscritos ao caso concreto, portanto a desaplicação da norma em concreto e
não perante a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral,
essa sim reservada ao TC em 1ª instância 281º, 1 e 292º CRP, conclui-se que a
reserva da ultima palavra e não uma reserva total de jurisdição em nada é
afetada (…). O objecto do processo judicial administrativo é o controlo dos
efeitos directos e imediatos que a norma, por ser imediatamente operativa,
produz na esfera jurídica do lesado e não um juízo puramente normativo de
desvalor constitucional.”
Concluindo, a decisão do STA não considerou haver falta de jurisdição do mesmo tribunal na medida em que objecto processual do pedido é, neste caso, o controlo de uma lesão a um direito, liberdade e garantia de natureza pessoal decorrente dos efeitos projectados por uma norma imediatamente operativa e, para isso a jurisdição legal e constitucionalmente competente para o seu julgamento é a jurisdição administrativa. Todavia, é de reconhecer que a fundamentação levada a cabo por este Tribunal, girando em torno da não afetação da reserva constitucional na sua vertente de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, acaba por não se inteirar observando o panorama geral em que se assiste ao facto de que a declaração concreta da legalidade é inconstitucional também por violação de bens e valores constitucionais de natureza objectiva, nomeadamente, os princípios da legalidade.
(2) Da ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros:
Pelo “espirito de
simplificação processual” e “aprofundamento da tutela jurisdicional efectiva”, não
obstante ter razão a Requerida quando alega que o autor da resolução é o
Conselho de Ministros (e não a Presidência do Conselho de Ministros), a verdade
é que a especificidade do processo justifica a primazia da decisão material e
que, por esse efeito, se considere não verificada a excepção de ilegitimidade
passiva.
Ora, nos termos do
artigo 10º CPTA tem legitimidade passiva a contraparte na relação material
controvertida tal como é configurada pelo autor, que neste caso em particular o
autor aponta como sendo a Presidência do Conselho de Ministros. Todavia, o
autor da resolução cuja ilegalidade é suscitada no processo, portanto a dita
contraparte na relação material controvertida, é o Conselho de Ministros, o que
faz com que careça de legitimidade passiva a contraparte configurada pelo
autor, na medida em que esta nem sequer integra o órgão Governo nos termos do
artigo 1º do Regime da Organização e Funcionamento do XXII Governo
Constitucional, havendo assim que absolver a requerida da instância.
Contudo, o tribunal
pronunciou-se no sentido de admitir o “erro” do Requerente, demonstrando a
irrelevância do mesmo perante outros valores que se sobrepõe. Afirma este que,
estando no âmbito de um processo urgente (intimação para a protecção de
direitos, liberdades e garantias – 109º CPTA), em que o dever de gestão
processual do juiz surge “especialmente reforçado” (7º-A CPTA, 110º e 110º- A
CPTA), “tendo em vista a assegurar o efeito útil da decisão” (111º CPTA),
conjugado com o facto de não estarmos perante um processo que cumpre uma função
“instrumental de amparo constitucional para os lesados nos seus direitos, liberdades
e garantias” (18º, 22º, nº5 e 268º, nº 4 e 5 CRP), não deve ser posta em causa
a pretensão material do autor, devendo-se, assim, “ignorar” pura e simplesmente
a diligência processual dilatória que vem por em causa os fundamentos acima
enunciados.
Neste sentido,
indica o professor Mário Aroso de Almeida que a Presidência do Conselho de
Ministros serve como centro de imputação dos atos e comportamentos do Conselho
de Ministros, sendo certo que em todo o caso, a demanda será sempre
salvaguardada pelo previsto no artigo 10º, 4 CPTA.
Bibliografia:
· ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 4ª edição, Almedina, 2020;
·
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo,
Reimpressão da 2ª Edição, Almedina, 2009
Constança Teixeira,
subturma 3, nº 58221
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