Análise ao acórdão do STA 10/09/20
(I) A declaração de ilegalidade de normas
imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto pode ter
como fundamento a violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se
esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no
âmbito de um processo urgente de intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias;
(II) - A apreciação dos pressupostos
processuais no âmbito da intimação para a proteção de direitos, liberdades e
garantias tem de atentar nas especiais características deste meio processual
enquanto instrumento, entre nós, de obtenção de amparo constitucional;
Primeiramente, cabe nos atermos a figura da tutela
urgente na medida em que é o meio processual que o autor utilizou. Tal figura
aproxima-se da tutela cautelar por serem meios que visam dar respostas rápidas
aos processos, isso se justificará pela existência de direitos que para serem
eficazmente exercidos, necessitam que sejam exercidos dentro de um limite
temporal, sob pena de serem esvaziados de seus efeitos em momentos posteriores.
Porém, a diferença entre as duas figuras enunciadas está em que, nos processos
urgentes o tribunal decidirá logo sobre o fundo da causa, ou seja, há decisão
de mérito. Já nas providências cautelares há apenas uma decisão de proteger o
direito que está sendo lesado através de algumas medidas imediatas que protejam
a vítima. Porém, a apreciação do litígio é provisória e isto não dispensa o
autor de intentar uma ação para que o seu direito seja definitivamente
acautelado. Por isso, como o acórdão expõe, nesse caso o uso da providência cautelar
seria errôneo, podendo vir a ser traduzido em um excesso de tutela que em decisão
de mérito posterior seria tida como infundada. Por isso releva a figura da
intimação de direitos, liberdades e garantias, porque desde logo, se discute os
fundamentos da questão levantada e em termos definitivos, o tribunal emitirá o
seu parecer.
Nesse
sentido, temos que ter em conta que estamos diante de um processo urgente de
intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (prevista do art.109° a 111°), está intimação é uma concretização do que encontramos
constitucionalmente no art.20/5° ainda que seja importante referir que este
meio de processo está disponível a todos os direitos, liberdades e garantias e
não só aqueles mencionados no art.20/5° da CRP – sendo este ponto alvo de
divergência. Por exemplo, Carla Amado Gomes acredita que a norma vem
especificamente concretizar aquilo que está exposto no art.20/5° como
mencionamos acima e por isso se ateria apenas aos direitos que esta mesma norma
expõe que são os direitos, liberdades e garantias de âmbito pessoais. Já o
professor Vasco Pereira da Silva se opõe ao afirmar que a previsão genérica não
limita o conteúdo da intimação, podendo sim a ver um alargamento para outros
Direitos, Liberdades e Garantias. Portanto, nesse caso, importa verificarmos se
há, antes de tudo, o cumprimento dos pressupostos para um processo urgente nos
termos do art.109°. O acórdão indica que existiria, de fato, uma fundada
urgência uma vez que de acordo com o requerente estaríamos perante normas que
afetariam de forma imediata e direta a liberdade dos cidadãos e sendo esses
interesses constitucionalmente protegidos, estaríamos diante de um direito que
só com o andamento célere do processo se garantiria, em tempo útil, o seu exercício.
O que comentaremos em sentido favorável a esta conclusão, uma vez que se trata
de princípios basilares do estado de direito democrático que, na visão do
autor, estariam a ser violados pela própria PCM ao emitir tal regulamento. Por
isso, concordaremos que faria sentido que, existindo uma real violação dos
direitos, liberdades e garantias de forma indiscriminada (ainda que a priori seja
uma violação hipotética que necessita ser analisada) haveria justificação para ao
autor, defendendo a existência desta violação, fazer uso da tutela
jurisdicional urgente. Porém, devemos
ter em conta que se fosse um caso do juiz considerar que o risco da lesão está
iminente e é irreversível, mas que não se encontra preenchido os pressupostos
de que depende a utilização dessa via principal, então deve proceder o mais
depressa possível ao decreto provisório da providência cautelar adequada,
convidando o interessado a apresentar o requerimento cautelar necessário (art.110°/1/A).
Para além disso, quanto concretamente a violação
dos direitos, liberdades e garantias que o autor invoca, em específico sobre o
direito de se reunir, por um lado não é questionada a existência desse mesmo
direito e indo além, diríamos que nem ainda a sua restrição pode ser contestada,
porém, importa que nós analisemos primeiramente o direito em causa como um todo,
como o próprio acórdão propõe, isso porque não é atingível com as restrições
atualmente impostas o núcleo essencial do direito de se reunir, mas apenas uma
vertente dele – as restrições se limitam a grupo de 10 ou 20 pessoas em vias
públicas. Para além disso, de fato, as restrições pelo COVID19 restringem até um
certo ponto direitos protegidos constitucionalmente ao proibirem a circulação
sob pena de haver multa em nosso ver. Porém, como todos os princípios constitucionais,
eles necessitarão ser contra balanceados e analisados mediante outros princípios
constitucionais igualmente importantes, que inclusive é o que a constituição
portuguesa indica que seja feito em caso de conflitos e este será um deles. Ou
seja, devemos ter em conta o bem estar coletivo e a saúde pública que são as
finalidades pelas quais estas mesmas restrições foram criadas para podermos
chegar a conclusão por uma violação ou não do direito que autor invoca. As
medidas surgem como nada mais do que uma tentativa de fazer com que o vírus
seja contido, importante será é que uma vez que não haja outra saída a não ser restringir
certos direitos fundamentais pelo conflito dos mesmos com direitos que, no caso
concreto, assumem um caráter mais importante, que essas mesmas restrições sejam
as menos gravosas possíveis, o que parece que foi atendido, na medida em que
visou-se que a restrição operasse apenas aos fins de semanas, véspera de
feriados e feriados o que normalmente são dias em que muitas pessoas já não
trabalham, por exemplo, o que evita que hajam perdas significativas para os
trabalhadores e empregadores. Tendo isso em conta, em concordância com o tribunal,
concluímos que não nenhuma violação de direito, liberdades e garantias o que
faz com que seja acertada a decisão do tribunal de não proceder a uma
declaração de ilegalidade.
Finalmente, sobre a possibilidade de haver uma desaplicação
das normas circunscrita ao requerente, consideramos que esta constituiria uma
violação do princípio da igualdade, muito embora reconheçamos que os direitos
fundamentais são individuais o que justifica a sua proteção também a este nível.
Deve-se ter em conta que no fundo a proteção visada pela norma de restrição é
uma proteção não só em nome do coletivo, mas se entrelaça com as
individualidades de cada um, visto que o objetivo é não infecção do vírus pelo
maior número de pessoas. Ou seja, se contarmos que cada um intente uma ação
para que não seja circunscrita a si as restrições, no fim elas não produziriam
nenhum efeito. Para além disso, também é importante atentar que o direito de
reunião é um direito exercido pelo coletivo, o que o acórdão aponta de uma
maneira muito feliz ao mencionar que, ainda que o indivíduo conseguisse que
relativamente a si não fossem aplicáveis tais restrições, as restrições
continuariam a ser aplicáveis ao resto das pessoas o que constituiria em um
impedimento para que o requerente pudesse exercer seu direito de reunião na
vertente limitada pela restrição, por isso não teria utilidade a desaplicação
da restrição nesses termos.
Maria Clara Salguette
N°57548.
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