Análise ao acórdão do STA de 10-09-2020 - intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias

§ Enquadramento 

O presente acórdão enquadra-se num leque variado de litígios que surgiram nos últimos meses emergentes da situação pandémica em que o país (e todo o mundo) se encontra e da sua respetiva legislação. Em concreto, o acórdão reporta-se à norma que limitou a possibilidade de reunião de mais de 10 ou 20 pessoas em espaços públicos, alegando o autor que tal disposição viola o seu direito fundamental a organizar e participar em reuniões de amigos e famílias entre outras atividades lúdicas. Para tal, intenta no STA uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 109º e ss. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), tratando-se esta ação de um processo urgente com vista a uma decisão de mérito da causa o mais célere possível. 


De seguida, iremos focar-nos principalmente nas questões relativas à possibilidade de declaração da ilegalidade de normas imediatamente aplicáveis tendo como fundamento a violação de disposições de âmbito constitucional e a relação dos pressupostos processuais com as especificidades do meio processual escolhido. 


§ 1ª questão: A declaração de ilegalidade de normas regulamentares imediatamente operativas por inconstitucionalidade (artigo 73º/2, CPTA)


O primeiro pedido do autor foi o da declaração de ilegalidade da norma que limita o número possível de pessoas juntas em espaços públicos, mas com efeitos para o caso concreto e não gerais, com o fundamento legal do artigo 73º/2 do CPTA. 


O Conselho de Ministros alega na sua defesa que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) não era competente para conhecer da causa pois o n.º 2 do artigo 73º do CPTA não admite tal pedido no seu âmbito (e fundamenta isso com a interpretação da norma em conformidade com a CRP ou por desaplicação da mesma com fundamento na violação da reserva de jurisdição constitucional do TC).


Trata-se de uma questão amplamente discutida na doutrina, como faz disso menção o próprio acórdão, existindo quem defenda a inconstitucionalidade da norma e quem considere que não existe aqui qualquer problema de constitucionalidade, como vai ser defendido pelo tribunal no caso em questão. No que concerne à primeira posição, a da completa inconstitucionalidade da norma, FERNANDO ALVES CORREIA propugna a existência de uma violação da reserva de jurisdição constitucional, pois ao Tribunal Constitucional cabe a última palavra em matéria de constitucionalidade de normas, fundamentando-se no artigo 221º da CRP. O Professor VASCO PEREIRA DA SILVA também defende a inconstitucionalidade da norma, mas por violação do principio da igualdade por limitar os seus efeitos a determinados sujeitos acrescentando problemas no âmbito do Direito Europeu (1).


De acordo com uma segunda posição, defendida por Licínio Lopes Martins e Jorge Alves Correia, deve ser feita uma interpretação em conformidade com o disposto no artigo 281º da CRP. Isto quer dizer que apesar de o artigo 73º/2 do CPTA estar aferido de inconstitucionalidade por violação da reserva de jurisdição constitucional ao não assegurar a existência em todas as situações de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (apenas no caso de decreto regulamentar como refere o artigo 280º/3 da CRP), é possível realizar uma interpretação do artigo em conformidade com o artigo 280º do CRP e artigo 69º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional (LTC). Quer isto dizer que deve ser aceite a declaração de ilegalidade com efeitos restritos com fundamento em inconstitucionalidade se se garantir que o Tribunal Constitucional tem a última palavra não podendo os tribunais administrativos regular a situação a título definitivo. 


Estas duas posições são as alegadas pelo Conselho de Ministros para justificar a não aplicação do preceito ao caso em questão. No entanto, a posição defendida pelo STA é a oposta, a da defesa da constitucionalidade da norma (também defendida por Mário Aroso de Almeida e José Carlos Vieira de Almeida), alegando que é a única forma de efetivar a aplicação do artigo 268º/5 da CRP e de o autor obter tutela jurisdicional efetiva. Ainda para defender esta posição alega que não existe violação da jurisdição constitucional porque o TC tem uma ‘reserva de última palavra’ e não uma ‘reserva total de jurisdição’. No entanto, este último argumento parece seguir o entendimento da interpretação conforme à constituição.


Concluindo, e tendo em conta os argumentos apresentados pela discussão doutrinária acima, compete-nos assumir posição na discussão e propugnar pela inconstitucionalidade da norma, no mesmo sentido que o faz o Professor Vasco Pereira da Silva, por um simples motivo: o efeito útil da norma resultaria em situações práticas totalmente descabidas, principalmente no caso concreto, onde veríamos uma única pessoa poder situar-se à margem da lei, enquanto todos os outros a tinham que respeitar e aceitar que alguém não o fizesse.


§ 2ª questão: Apreciação dos pressupostos processuais no âmbito de uma intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias.

É alegado pelo Conselho de Ministros na sua defesa, a ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, a impropriedade do meio processual utilizado para o primeiro pedido do autor e a incompetência hierárquica do STA para decidir sobre o segundo pedido e ainda a falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. 


    De modo breve, cumpre referir que na primeira excepção relativa à ilegitimidade passiva da Presidência é de aplicar o artigo 10º/1/2 do CPTA, sendo efetivamente o Conselho de Ministros a entidade com legitimidade, existindo contudo ampla discussão na doutrina em que é de aceitar a citação da Presidência pela sua função e auxilio ao CM, porém não deixa de estar aqui patente uma questão de ilegitimidade; na segunda excepção apresentada é patente que a Presidência do CM também não tem razão pois a utilização de uma providência cautelar não seria nada adequada para a tutela que o autor quer pois era necessário no caso uma decisão material não sendo a providência adequada pois esta tem limitação temporal e carece de uma ação principal, podendo tal demorar demasiado tempo e não garantir a tutela rápida que o requerente quer; na terceira excepção, a argumentação está também errada exatamente pelo argumentado apresentando pelo STA, nomeadamente a base legal do artigo 21º/2 do CPTA; na quarta excepção, a da falta de jurisdição, remete-se para o supra citado.


O tribunal alega no primeiro caso que a intima relação institucional entre os dois órgãos e a natureza urgente do processo de intimação que procura assegurar em tempo útil uma decisão de mérito da causa, não se justificaria uma notificação para correcção da petição, alegando o seu poder de direção processual (artigo 7º-A, 110º-A e 111º do CPTA). Acrescenta o espirito de simplificação processual, a necessidade efetiva de tutela jurisdicional e a primazia dada à decisão material neste tipo de processo. Refere também, para a segunda alegação, que não se poderia utilizar o processo cautelar pois apenas uma decisão de fundo seria juridicamente adequada e em último, de modo a suprir a irregularidade da incompetência do STA, chama à colação o artigo 21º/1 do ETAF relativo à cumulação de pedidos e considera-se por isso competente.


Ora bem, toda esta argumentação do tribunal serve para, ao abrigo dos fundamentos do processo de intimação, justificar a sanação da falta de pressupostos processuais. Quais são então os fundamentos deste processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantas? Este processo visa essencialmente assegurar o direito à tutela jurisdicional efetiva postulado no artigo 20º/5 da CRP. Como pressupostos temos a necessidade de uma emissão célere de uma decisão de mérito e que essa decisão seja indispensável para assegurar o exercício em tempo útil, a urgência na decisão (que pode variar no grau) para evitar uma lesão/inutilização do direito e que esta não possa ser resolvida através de uma ação normal, especial ou de um processo cautelar. Verificados todos estes pressupostos é imperativa a urgência na decisão da causa e não podendo ser resolvido por outro meio se não por este, ainda mais se justifica a necessidade rápida de uma decisão. É esta necessidade de celeridade que poderá justificar a ação do tribunal em sanar a falta de pressupostos verificados, justificando-se assim com a urgência da decisão de mérito. Porém, se estes pressupostos não estivessem todos efetivamente verificados e preenchidos, o tribunal não poderia sanar  oficiosamente a falta de pressupostos processuais pois não estaria sequer fundamentado a necessidade de urgência que justificasse essa sanação. 


Concluindo, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias era efetivamente a melhor forma de adquirir tutela jurisdicional efetiva, porém, a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais consubstancia uma forma de tutela desigual perante todos os abrangidos pela norma e poderá esgotar todo o efeito útil da mesma por isso. A sanação por parte do tribunal de determinados pressupostos processuais dada a urgência do pedido pode efetivamente ter fundamento, contudo é do meu entendimento que terá de haver um limite a esta sanação oficiosa pois acabaríamos por aceitar situações em que há um total desrespeito pelos pressupostos processuais colocando-se a ação num tribunal qualquer, contra uma qualquer parte, pois tudo isso irá ser sanado por se tratar de um processo urgente. Não me parece que tal possa acontecer e por isso os tribunais devem limitar os seus poderes ao necessário, preferindo claramente uma decisão de mérito e tentando sempre alcançá-la mas com o mínimo respeito pelos pressupostos processuais pois nunca é referido que a ação de intimação não precisa da verificação dos pressupostos processuais. De modo geral, a decisão do STA foi acertada e entende-se a sua não procedência. 


(1) Acórdão Kuhner do TJUE quando está em causa a declaração de invalidade de uma norma por violação do direito comunitário, esta declaração tem que produzir efeitos gerais.


Bibliografia:


Cadernos de Justiça Administrativa, Braga, n.º 114 (Novembro-Dezembro 2015)

- Mario Aroso de Almeida, ''Manual de Processo Administrativo'', 4ª edição


JOANA BARROS 

N.º 58251


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