Análise do Acórdão do STA (processo: 088/20.8BALSB)
Introdução
Antes de recorrer à análise do Acórdão, cabe fazer uma
breve distinção que será útil para melhor entender os problemas que à frente
serão abordados.
Há dois caminhos para pedir a impugnação de regulamentos
administrativos: a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e a declaração
de ilegalidade sem força obrigatória geral. A primeira está prevista no
art.73º/1 do CPTA. Pode ser pedida por quem tenha sido ou possa vir a ser
prejudicado pela aplicação da norma, relevando então o grau de probabilidade. Não
obstante, esta medida só pode ser requerida pelos particulares depois de a
norma ter sido desaplicada em três casos concretos. Contudo, por exigir que se
verifiquem casos de desaplicação anteriores, esta ação não goza do mesmo
carácter urgente que a segunda. Em relação a esta última, tal como mencionado é
requerida quando existe uma norma imediatamente operativa que põe em causa o
livre exercício de um direito pessoal. É sobre esta que o acórdão em causa se
debruça.
Da falta ou não de jurisdição deste Supremo Tribunal
Administrativo para julgar o processo, a Requerida veio aproveitar-se de uma divergência doutrinária
quanto à própria constitucionalidade do art.73º/2 CPTA para invocar a falta de
jurisdição do Supremo Tribunal Administrativo (STA) para conhecer do mérito da
causa. Tal como é mencionado no acórdão, na doutrina há quem conteste a
constitucionalidade do artigo em supra mencionado, uma vez que prima
facie poderíamos estar a violar a reserva de jurisdição constitucional, é o
caso do professor Vasco Pereira da Silva. É ao Tribunal Constitucional que
cabe, exclusivamente, a fiscalização da inconstitucionalidade com força
obrigatória geral (arts.281º/1 e 2 e 282º CRP), mas como o STA veio sublinhar
no acórdão, o caso presente apenas tem em vista a desaplicação no caso
concreto, ou seja, sem força obrigatória geral. Também surge dificuldade, porque
uma norma jurídica não pode ao mesmo tempo representar uma obrigação e uma
ilegalidade em relação aos destinatários. Tanto pelo princípio de igualdade
como de segurança jurídica, não poderíamos modelar os efeitos de determinado
acto regulamentar à medida que o particular tenha ou não a seu favor uma
decisão favorável do tribunal em relação ao seu caso concreto, sobre a
legalidade do próprio acto. De qualquer modo, o Tribunal veio reafirmar “O
objecto processual é neste caso o controlo de uma lesão a um direito, liberdade
e garantia de natureza pessoal decorrente dos efeitos projectados por uma norma
imediatamente operativa e, para isso, a jurisdição competente é a
administrativa.” dando substância à necessidade de garantir a tutela
proporcionada pelo art.268.º/5 CRP e a meu ver bem, pois de outro modo o
direito do particular estaria totalmente desprotegido.
Não me parece, então, que a competência do STA em
declarar ilegal determinada norma da administração ponha em causa o papel de
fiscalizador da inconstitucionalidade do TC, não só pelo acima referido sobre a
própria consagração constitucional da impugnação administrativa, mas uma vez
que o papel do STA é garantir o respeito dos direitos dos particulares perante
a administração pública no desempenhar das suas funções político-legislativas.
Como o próprio STA refere: “O objecto do processo judicial administrativo
é o controlo dos efeitos directos e imediatos que a norma, por ser
imediatamente operativa, produz na esfera jurídica do lesado e não um juízo
puramente normativo de desvalor constitucional.”. Ou seja, existe aqui uma
necessidade de garantir a manutenção do direito de cada um em concreto, quando
uma norma o põe em risco num futuro imediato. Por outro lado, a competência do
TC é de verificar a conformidade com a constituição, não sendo necessário
proteger um caso específico mas todos em abstracto, mesmo que não tenha ainda
havido dano.
Da ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de
Ministros, a Requerida vem
afirmar que existe lugar a excepção dilatória, uma vez que o autor da Resolução
em causa é o Conselho de Ministros. De facto, a regra da legitimidade passiva presente
no art.10º/2 estabelece que quando se trata de ação contra o Estado, se deve
demandar o ministério a que o órgão em causa se insere. O problema aqui é
exactamente este, o Conselho de Ministros não está integrado em nenhum
ministério. Assim, tal como o tribunal argumentou: “(…)atenta na íntima
relação intersubjectiva institucional existente entre a Presidência do Conselho
de Ministros e o Conselho de Ministro; “ percebemos que esta relação vem
pacificar a possibilidade de demandar PCM quando estamos perante actos da
responsabilidade do CM. Isto resulta do facto de haver um conjunto de entes não
personalizados a quem, por diferentes razões, se deve reconhecer personalidade
judiciária, mas que não são diretamente abrangidos pelos critérios de extensão
contemplados no artigo 10.º: ou porque não podem ser qualificados como
“ministérios”, ou porque não podem ser reconduzidos a simples órgãos
administrativos, inseridos na estrutura hierarquizada do Estado‐Administração ou
de outra pessoa coletiva pública. Por um lado, há serviços e órgãos que, não
sendo ministérios, também integram o Governo. Alguns autores defendem que a
referência a “ministérios” (art.10.º/2) inclui também a Presidência do Conselho
de Ministros, que servirá como centro de imputação dos atos ou omissões do
Conselho de Ministros, do Primeiro‐Ministro e dos membros do Governo na
dependência direta do Primeiro Ministro.
Além disto, o STA veio ainda realçar o facto de estarmos
perante um processo urgente, o que “impõe o escrutínio dos pressupostos
processuais cum grano salis, o mesmo é dizer que com a devida ponderação
dos princípios do favorecimento do processo, da colaboração do juiz e
da justiça material, atenta a especial (reforçada) efectivação do
princípio da tutela jurisdicional efectiva que aqui está em causa ex vi da
conjugação dos artigos 18.º, 22.º, n.º 5 e 268.º, n.ºs 4 e 5 da CRP.” Isto significando
que se o tribunal notificar o requerente
para que este procedesse à correção da PI, “redundaria numa diligência
processual puramente dilatória, quando não frustradora da pretensão primeira do
Requerente que é obter a tutela judicial relativamente ao seu pedido, o qual é perfeitamente
percetível pela partes e pelo Tribunal”. É de louvar esta posição do STA,
que é afinal o maior garante de protecção dos particulares em relação à Administração.
O tribunal veio muito veementemente afirmar a necessidade de garantir a tutela
jurisdicional deste pedido urgente, não privilegiando o formalismo que iria retirar
o efeito útil da decisão.
Da impropriedade do meio processual para a formulação do
primeiro pedido, a Requerida vem
alegar esta excepção por considerar que a ação em causa não poderá conceder ao
Requerente aquilo que por ele é pedido. Este pede que lhe seja desaplicada a
norma que impõe a: “proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em
espaço público”. Uma vez que esta acção produz apenas efeito de caso
julgado no caso concreto, ainda que a Requerente possa exercer o seu direito de
reunião, não haverá ninguém com que se possa reunir, pois mais ninguém estará
abrangido pela decisão judicial. Assim, o meio mais apropriado para o
Requerente conseguir aquilo que pede seria uma cumulação de pedido de
impugnação de normas, com uma providência cautelar. Por sua vez o
Tribunal vem contrariar esta ideia, pois aquilo que é pedido pelo Requerente é
a desaplicação de uma norma que vem limitar um direito pessoal, logo do qual é
titular, opostamente à ideia, que a Requerida tenta fazer passar, de que está
em causa um direito colectivo a reunir. Além disso, o meio processual invocado
pela Requerida, este sim, é inapropriado uma vez que a impugnação iria prolongar
o tempo da decisão, retirando a possível tutela do direito, e a providência
cautelar iria retirar efeito útil ao pedido principal, pois sendo a norma em
causa de aplicação temporária haveria “excesso de tutela”, nas palavras
do STA.
De facto tenho de acompanhar as posições tomadas no
acórdão pelo tribunal, pois existe uma clara aplicabilidade da ação em causa,
cujos pressupostos serão analisado infra. De qualquer modo, as alegações
da Requerida são lógicas. O facto do Requerente ver desaplicada a norma não lhe
trará qualquer diferença factual, pois não lhe será possível reunir com ninguém
e neste ponto acompanho a opinião do STA ao anotar que “Poderia dizer-se que
a formulação mais correcta a adoptar no pedido seria a de pedir a imposição à
Administração da abstenção de proibir ajuntamentos ou reuniões “convocadas”
pelo Requerente ou em que ele participasse”.
Da incompetência hierárquica do Supremo Tribunal
Administrativo para julgar o segundo pedido, a Requerida vem contestar a competência do STA para “exercer a sua competência relativamente às
forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o
Requerido e as pessoas que com ele estejam reunidas de exercer plenamente a sua
liberdade jusfundamental de reunião”. Isto porque quem tem competência é o
Tribunal Administrativo de Círculo (arts.24º, 37º e 44º ETAF). De todo o
modo, o STA veio invocar a sua competência, uma vez que ao ser competente para
conhecer o primeiro pedido (ações ou omissões do CM, art.24º/1 a) iii) ETAF),
seria igualmente competente para conhecer de um pedido que fosse cumulado, por
via do art.21º/1 do CPTA.
A alegação da Requerida é totalmente desprovida de
sentido, pois tratando-se de pedidos cumulados, não faria sentido que se
exige-se um processo duplo sobre a mesma ação. Além do artigo que confere
competência ao tribunal superior competente nos demais pedidos.
Dos
pressupostos da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias,
esta ação encontra-se prevista nos arts.109º e ss. do
CPTA, sendo necessário que se verifique que: em causa esteja o exercício, em
tempo útil, de um direito, liberdade e garantia; o pedido se refira à imposição
de uma conduta positiva ou negativa à Administração ou a particulares; que a
adopção da conduta pretendida seja apta a assegurar o exercício dos direitos,
liberdades e garantias postos em causa e que a célere emissão da intimação seja
indispensável por não ser possível, nas circunstâncias concretas, o
decretamento de uma providência cautelar (v.g. Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte, processo 01923/17.3BEBRG, de 15/12/2017)
É
pacífica a concretização do primeiro requisito, uma vez que os direitos,
liberdades e garantias são de fácil identificação (são aliás a própria razão do
pedido). Da mesma maneira, o segundo e o terceiro pedidos não causam dificuldade,
pois são o próprio pedido da ação (a conduta que se pretende por parte da
administração) e a adequação para que esse pedido proteja os direitos em causa,
respectivamente, não sendo então aqui que devemos centrar a nossa discussão.
Em
relação ao quarto requisito, devemos discutir a sua importância. O facto da
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias ser um instituto
subsidiário faz nos questionar por que razão o instituto principal ou primário
não é nestes casos aplicável. Falamos da providência cautelar. Ora esta não se
trata de um pedido principal em si própria, uma vez que está sempre dependente
de uma ação principal. O que aproxima estes dois requisitos é o facto de serem
acionados sempre que exista receio da violação irreversível de um direito do
particular, numa concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva
(20º/5 e 268º/4 CRP e 2º CPTA), mas não nos mesmos termos. A providência
cautelar é pedida quando no decorrer da ação principal se venha a perceber que
a dilação no tempo da sentença faça com que a mesma perca o seu efeito por já
ter decorrido o acto lesivo. Já em relação à intimação, existe uma norma
imediatamente operativa e que por isso, tem de haver uma decisão célere. O que
nos questionamos é então por que não pedir logo uma providência cautelar em vez
de estarmos a recorrer a um instituto subsidiário? A resposta é simples. Como a
norma em causa opera de imediato, uma providência cautelar (que não é uma
decisão final e por isso não obedece a tantos requisitos processuais) iria
esgotar o sentido de qualquer sentença que o juíz decretasse em relação à ação
principal, pois o particular já teria tirado o proveito que o “bloqueia” da providência
tinha operado. No presente caso, esta
realidade é óbvia, uma vez que, como o próprio acórdão refere: “Acresce que
estamos também ante normas com vigência temporal limitada (…)”, pelo que a
posição que o tribunal tomar vai decidir definitivamente a procedência ou não
do pedido. Assim, é essencial que haja
uma ação igualmente célere, mas com carácter de decisão final, em que acha
conhecimento do mérito, que possa fazer efeito de caso julgado (ainda que
circunscrito ao caso concreto).
Miguel
Mateus Leal
(59239)
Comentários
Enviar um comentário