Análise do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Processo nº 088/20.8BALSB)

    O presente artigo pretende realizar uma breve análise do acórdão referido, atendendo, exclusivamente, aos pontos de cariz processual que no seu âmbito se colocam. Para este efeito importa, antes de mais, contextualizar o acórdão em apreço. Assim, importa referir que o caso em questão relata a proposição de um processo urgente de intimação pelo Requerente contra a Presidência do Conselho de Ministros a fim de obter a devida proteção dos seus direitos, liberdades e garantias constitucionalmente conferidos. Ora, o Requerente, considerando-se atingido no seu direito fundamental de organizar e participar em “reuniões de amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques” pelas normas restritivas que regulam o estado epidemiológico em que nos inserimos, vem exigir a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos, bem como a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerente e as pessoas que com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião.

Frente as pretensões da Requerente, a Presidência do Conselho de Ministros (i.e., Requerida) defendeu-se por impugnação (alegando, nesta sede, a constitucionalidade das normas) e por exceção (invocando, por um lado, a falta de jurisdição (quanto ao primeiro pedido) e a incompetência hierárquica (quanto ao segundo pedido) do Supremo Tribunal Administrativo para julgar a questão em análise e, por outro, a ilegitimidade passiva da própria Presidência do Conselho de Ministros, a par da impropriedade do meio processual escolhido. A análise em decurso focar-se-á somente sobre a argumentação subjacente às exceções deduzidas, atentando, deste modo às questões sobretudo de cariz processual.

A fim de atentar às questões levantadas pelas partes cumpre discorrer brevemente acerca de algumas noções teóricas. Neste sentido, importará referir que a Intimação para Proteção de Direitos Liberdades e Garantias insere-se no âmbito dos Processos Principais Urgentes previstos em sede do artigo 36º do CPTA e regulados nos artigos 97º e ss do CPTA. Os processos em análise fundam-se na convicção da que determinadas questões, em função de certas circunstâncias, devem obter uma resolução definitiva pela via judicial num curto espaço de tempo. O processo urgente no caso em análise insere-se na categoria de intimação e assume-se como uma ação de condenação, em regra dirigida à Administração, à práticas de determinados comportamentos (aqui entendidos no seu sentido amplo, compreendendo, deste modo, tanto ações quanto omissões). A presente intimação pretende tutelar direitos, liberdades e garantias do requerente - opção que lhe é conferida pelo artigo 268º/5 da CRP em razão do especial perigo associado a lesões causadas sobre estas prerrogativas. Este tipo de processo urgente é admitido apenas nos termos do artigo 109º do CPTA, quando cumpridos os pressupostos aí estabelecidos. Deste modo, o recurso a intimações deste cariz quando a imposição comportamental a opor à Administração Pública seja indispensável para garantir o exercício em tempo útil do direito, liberdade ou garantia atacado. Além disso, a decisão a obter do processo urgente em análise deverá ser urgente na medida em que se tenha por absolutamente essencial para evitar a lesão do direito questionado, de maneira a que o recurso a processos administrativos normais não se assumam como adequados para garantir este tipo de tutela. Deste modo, o regime em questão exige ainda que se verifique a impossibilidade ou inadequação do recurso a decretamentos provisórios no âmbito de providências cautelares. 

Dito isto, importa passar à análise do supramencionado acórdão:

Em primeiro lugar, cumpre atentar à invocação de falta de jurisdição do Supremo Tribunal Administrativo para julgar a questão em apreço. Este argumento encontra-se intimamente relacionado com a reserva jurisdicional do Tribunal Constitucional ínsita no artigo 281º/1 e 2, bem como 282º da CRP que coloca sob o domínio exclusivo da entidade em questão a declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral. Neste sentido, o Requerido alega que o pedido realizado pelo Requerente ofende a referida reserva, alegando, para além disso, a inconstitucionalidade da norma do artigo 73º/2. Ora, o defeito de que padece a argumentação do Requerido incide sobre o facto de, nesta sede, se requerer apenas a declaração de ilegalidade (em sentido amplo, abrangendo, deste modo, também a inconstitucionalidade) a fim de se obter a sua desaplicação ao caso concreto e com efeitos pessoais sob o autor do pedido. Assim, a referência à ilegalidade da norma nada mais é do que o fundamento escolhido pelo Requerente, escolha esta que se lhe afigura inteiramente legítima na medida em que o regime do 73º/2 assim o permite. Aliás, a própria lógica subjacente ao processo urgente em questão assim o indica: o objeto do mesmo é controlar os efeitos diretos e imediatos que a norma, pelo seu cariz operativo, produz na esfera jurídica do lesado e não a formulação de um juízo normativo de desvalor constitucional. Além disso, importa notar que a invocação da inconstitucionalidade da norma do artigo 73º/2 com fundamento na ofensa da reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional é infundada dado que esta delimitação opera apenas quanto à fiscalização concreta da constitucionalidade, não se ocupando com eventuais desaplicações de normas com efeitos circunscritos, não obstante os cariz dos argumentos escolhidos para sustentar essa pretensão.

Em segundo lugar, importa atentar à alegação de incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para julgar o pedido de condenação da Presidência do Conselho de Ministros, i.e, o segundo pedido deduzido, referente à imposição de um comportamento à Administração. Ora, a argumentação apresentada, nesta sede, pelo Requerido é desconforme às normas gerais de competência estabelecidas pelo CPTA, pelo que o argumento em questão não tem procedência em detrimento à letra da lei, embora este aspecto tenha perdido relevância dado que o Supremo Tribunal Administrativo concluiu no sentido da inutilidade do presente pedido, uma vez que o mesmo é uma decorrência necessária do primeiro.

Em terceiro lugar, cumpre fazer menção à pretensa ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros. Ora, muito embora, as normas cuja desaplicação se pretende sejam provenientes de uma Resolução emitida pelo Conselho de Ministros, o Requerente deduziu o pedido em análise apenas contra a Presidência do Conselho de Ministros. Note-se, a este propósito, que a legitimidade passiva a nível do Estado determina-se a partir dos ministérios e, efetivamente, nos termos da lei orgânica, a Presidência do Conselho de Ministros não se encontra nele integrado. No entanto e, atendendendo à materialidade funcional da referida entidade, alguma doutrina tem explicado que, nestes termos, não se pode considerar a Presidência do Conselho de Ministros como desligada do próprio Conselho. Nesta sede, o Supremo Tribunal Administrativo rendeu o presente problema a uma questão interpretativa, invocando, para o efeito, os acrescidos poderes de direção processual que lhe competia, a par de razões de celeridade, colaboração judicial e favorecimento processual. Deste modo, atendendo ao espírito de simplificação processual que informa o regime do processo administrativo urgente e, embora vendo razão na questão invocada pela Requerida, concluiu pela sua escassa importância e indicou que intencionalidade da Requerente ao deduzir o pedido contra a Presidência do Conselho de Ministros era clara - verdadeiramente, a dedução do pedido pelo Requerente contra a Presidência do Conselho de Ministros foi feita tendo em conta referido órgão no seu todo, sem dar nota da separação artificial entre estes dois órgãos. Deste modo, decidiu em conssonância com a doutrina supramencionada. Quanto à presente questão importa tomar posição: deste modo, compreende-se a opção tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo que se afigurou inteiramente conforme às circunstâncias do caso na medida em que se requeria a desaplicação de uma norma cuja vigência se encontrava temporalmente circunscrita. Além disso, a solução adotada também se mostra adequada à tutela dos direitos, liberdades e garantias em questão, atendendo à própria importância dos mesmos e à necessidade de outorga de tutela efetiva sobre estes. Além disso, considera-se que o entendimento pelo qual o Supremo Tribunal Administrativo se pautou é, acima de tudo, adequado à realidade funcional do Conselho de Ministros.

Em quarto lugar, quanto à impropriedade do meio processual importa referir vários aspetos. Por um lado, ao questionar a adequação do meio o Requerido questiona a intencionalidade do Requerente aquando do recurso ao presente processo urgente. Neste sentido, explica que não deve ser possível ao Requerente recorrer ao processo urgente sob a forma de intimação como “meio impugnatório” da norma a desaplicar. Ora, não se compreende o recurso à exceção referida: o recurso ao processo urgente de intimação é  adequado ao caso em questão e a pretensão do Requerente encontra-se perfeitamente inserida nos casos cuja resolução cabe a este tipo de processo. Neste sentido e, tendo em conta que o que se pretendia era a desaplicação da norma com efeitos circunscritos à pessoa do Requerente, é inteiramente inadequado alegar a utilização do processo em apreço como forma de impugnar a norma cuja desaplicação se pretendia. Por outro lado, a exceção atinente à inadequação do meio exige a apreciação do preenchimento dos pressupostos ínsitos no artigo 109º do CPTA. Assim, cumpre reconhecer a verificação a fundada urgência na resolução do presente caso, na medida em que se tratam de normas de aplicação imediata, pelo que o direito afetado está em iminente risco de lesão, além de que estão em causa normas cuja aplicação temporal restrita, de modo a que não só fará sentido recorrer a uma decisão de mérito imediatamente (dado que, atendendo à contingência temporal associada à vigência das normas, não fará sentido diferir esta questão para momento posterior), como também o fará obter a referida decisão por meio de processo urgente.

Em tom de conclusão, importa notar a deficiência na argumentação de cariz processual prestada pelo Requerido na medida em que se mostrou inteiramente desconectada da racionalidade do regime dos processos urgentes e da própria argumentação do Requerente. 

 

 

 

 

Bibliografia:

è Código de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais

è Vieira de Andrade, José. A Justiça Administrativa (Lições), 10ª Edição, Almedina (2009).

è Aroso de Almeida, Mário. Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina (2016). 

è Acórdão STA de 10 de Setembro de 2020. Processo nº 088/20.8BALSB in http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6a509a0b01993cfb802585e600446990?OpenDocument&ExpandSection=1

 

 

Gabriela Neves de Souza

Nº 58515

Subturma 3, 4º TA.

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