Análise dos Pressupostos Processuais do Acórdão STA de 10-09-2020


No presente processo foi requerido ao Supremo Tribunal Administrativo (STA) a análise de um pedido de Intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros, pedindo a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas dos pontos 1, 2 e 8, conjugados, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020 e ainda a que se encontra no art. 15.º do Anexo àquela Resolução, como das normas análogas que viessem a ser aprovadas por renovação do conteúdo da mencionada Resolução (1º pedido); e a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competêncirelativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerente e as pessoas que com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião (2º pedido).

No nosso trabalho, debruçar-nos-emos sobre os três pontos, relativos aos pressupostos processuais, de maior discussão neste caso: a Competência do Supremo Tribunal Administrativo em relação ao 1º pedido, a Ilegitimidade Passiva da Presidência do Conselho de Ministros e os Pressupostos da Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias, referindo também a suposta Incompetência do STA no 2º pedido e a sua inviabilidade.

Quanto à Competência do STA:

A doutrina discute se o art. 73º/2 CPTA deverá ser aplicado ou se não o poderá ser por o mesmo violar a reserva de jurisdição de constitucional ínsita nos art.s 281º/1 e 2 e 282º CRP.

Estes artigos colocam sob o domínio exclusivo do Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral, nos casos referidos nas alíneas do art. 281º/1 CRP.

Assim, para alguns autores, o art. 73º/2 CPTA estaria a violar o art. 221º CRP que determina que a administração da justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional compete apenas ao Tribunal Constitucional.

Para além disto, considera-se que ou uma norma é legal ou não é, e que, sendo ilegal, isso não pode deixar de se projetar na sua eficácia, pelo que, ou se aplica a todos ou não se aplica a ninguém. Tudo isto se justifica pelos Princípios da certeza e segurança jurídica, Igualdade e da legalidade. Desaplicar uma norma em relação a A e manter a sua força obrigatória contra B é altamente lesivo dos direitos fundamentais de B, e faz com que este não possa saber o que o espera e que comportamentos deve tomar. Vasco Pereira da Silva chega mesmo a referir que tal situação, a existir, afeta o Estado de Direito – já que permite a subsistência da ilegalidade, apesar de ela ter sido declarada por uma sentença.

De outra forma, alguma doutrina defende que não há inconstitucionalidade do art.º 73º/2 CPTA, na medida em que a sua interpretação deve ser conjugada com os art.º 280º CRP e art.º 70º LTC: os Tribunais Administrativos podem efetuar o controlo difuso de fiscalização concreta (280º CRP) e que, à reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional cabe apenas a declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral (281º CRP). Assim, a recusa de aplicação de uma norma a um caso concreto é sempre passível de recurso para o Tribunal Constitucional, tendo sempre este a última palavra sobre a decisão de inconstitucionalidade das normas.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que aceitar o pedido, seria a única forma de assegurar a efetividade do art. 268º/5 CRP, dado que as normas em causa eram imediatamente operativas e violavam direitos, liberdades e garantias pessoais, e de que a finalidade do pedido do requerente era só a aplicação da norma ao seu caso concreto.

Apesar de entender a critica doutrinária feita a este artigo, é realmente difícil de aceitar que estando em causa uma norma inconstitucional e sendo esta submetida a um processo jurisdicional que a considera assim, seja possível decretar que esta continue a produzir efeitos em relação a todos os cidadãos, exceto a um caso específico (ou alguns). No entanto, tendo em conta a urgência dos processos de Intimação e, estando já a ocorrer uma violação de direitos de particulares, parece-me inaceitável que este não se pudesse interpor em nome de uma defesa de todos que acabaria por nunca ser de possível efetivação, pelo menos neste momento e tendo em conta as ações possíveis no nosso ordenamento. Estar-se-ia a opor a um, cujos direitos estão a ser violados, uma falsa proteção dos direitos dos vários. Proteção esta que nunca se concretizaria em tempo útil.

Assim, parece-me mais razoável que se dê a cada cidadão a possibilidade de se opor contra uma norma inconstitucional e que este veja a sua decisão a produzir efeitos. Ainda que não seja a solução perfeita, a verdade é que pelo menos assim, a justiça poderia ser feita em relação a uns, e ainda que nem todos interpusessem uma ação, haveria sempre a possibilidade de cada cidadão defender os seus direitos, liberdades e garantias.

Quanto à Ilegitimidade Passiva da Presidência de Conselho de Ministros:

Segundo o art. 1.º/2 do Regime da Organização e Funcionamento do XXII Governo Constitucional, o Conselho de Ministros é considerado um órgão do Governo, enquanto o Presidente do Conselho de Ministros é membro do Governo.

O art. 10º/2 CPTA indica-nos que nos processos intentados contra o Estado que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios, a parte demandada é o ministério ou ministérios.

Interpretando de forma estrita este artigo, a Presidência do Conselho de Ministros não teria legitimidade passiva nesta ação e estaríamos perante uma exceção que faria, no mínimo, atrasar o processo.

Porém, o Tribunal tem em conta a íntima relação institucional entre a Presidência do Conselho de Ministros e o Conselho de Ministros; a intencionalidade do requerente; a urgência do pedido e o facto de o juiz ter poderes de direção processual (7º-A CPTA) e de estes terem poderes especialmente reforçados (art. 110º e 110º-A CPTA, tendo em vista assegurar o efeito útil da decisão (art. 111º CPTA), nas ações de Intimação, decidiu não considerar verificada a exceção de ilegitimidade passiva.

Apesar de concordar com a decisão no caso concreto, é necessário ressalvar que tal decisão só foi tomada pois se estava perante um processo urgente, esta decisão nunca deveria ser tomada num processo normal, em honra do princípio da legalidade, igualdade e segurança jurídica.

 

Quanto à Impropriedade do Meio Processual para a Formulação do 1º Pedido:

A Requerida considera que o Requerente não podia utilizar a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias com o intuito de obter a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, uma vez que a intimação apenas pode ter como “resultado” uma sentença condenatória e não pode ser utilizado como “meio impugnatório”. Mas o mesmo, não tinha razão, pois a intenção do legislador ao criar as Intimações era garantir uma decisão e mérito para as partes que não ficassem devidamente tuteladas com as providências cautelares, e estamos perante um desses casos. A cumulação de uma providência cautelar com um pedido de impugnação da norma não produziria os mesmos efeitos que a presente Intimação pois seria só a providência cautelar a produzir efeitos m tempo útil e esta poderia dar uma resposta excessivamente cautelosa ao problema, protegendo, sem necessidade o Requerente.

Quanto ao 2º pedido: em relação à Competência do Tribunal, a lógica descrita anteriormente, em relação ao 1º pedido, continua a aplicar-se. Ainda assim, o tribunal entendeu que este 2º pedido era inútil por não produzir nem poder produzir efeitos diferentes do 1º.

Concluindo, apesar de dispor de pouco tempo para formular a sua decisão, parece-me que as decisões do Supremo Tribunal Administrativo, em relação aos pressupostos processuais, forma acertadas e devidamente justificadas.


Teresa Botelho Neves

Nº 58268

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