Apontamento ao Ac. STA, de 10 de setembro de 2020 – Processo nº088/20.8BALSB

1.      Introdução

A presente exposição destina-se a analisar o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de setembro de 2020, de uma perspetiva de Contencioso Administrativo, especificamente no que concerne à declaração de ilegalidade de normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto e à apreciação dos pressupostos processuais no âmbito de intimação para a proteção de direitos liberdades e garantias, pontos introdutórios do Sumário do aresto jurídico em apreço.

2.      Dos factos

Inserido no atual quadro pandémico, Portugal tem sempre vindo a adotar medidas de prevenção, de contenção e de mitigação da transmissão da infeção por COVID-19, conforme a evolução do quadro epidemiológico. Na sequência do período de desconfinamento, durante o verão, a Área Metropolitana de Lisboa era uma das zonas mais afetadas, o que levou o Governo, na Resolução do Conselho de Ministros nº55-A/2020, a decretar situação de contingência para a Área Metropolitana de Lisboa e situação de alerta para o restante território nacional.

Ora, em virtude da adoção destas novas medidas restritivas, o Autor intentou junto do Supremo Tribunal Administrativo um processo de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros, ao abrigo do Art.24º, nº1, alínea iii) ETAF e dos Arts.109º e ss CPTA, pedindo, por um lado, a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas da conjugação dos pontos 1, 2, e 8 da Resolução do Conselho de Ministros nº 55-A/2020, do Art.15º do Anexo à Resolução e de quaisquer normas análogas que viessem a ser aprovados por renovação do conteúdo da mencionada Resolução; e, por outro, a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas, no sentido de não o impedirem e às pessoas que com ele se viessem a reunir de exercer plenamente a sua liberdade de reunião, visto que considerava que estava a ser atacado o seu direito fundamental de organizar e participar em reuniões de amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques.

De seguida, veio a Presidência do Conselho de Ministros apresentar a sua defesa por exceção, alegando falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, impropriedade do meio processual e incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para decidir do segundo pedido; e, por impugnação, sustentando a conformidade constitucional das normas impugnadas.

3.      Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias

No quadro do Estado Social e de uma Administração Prestadora, para assegurar a defesa dos direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos perante atuações lesivas da Administração Pública, a lei (em especial, o CPTA) oferece, para além de providências cautelares, um conjunto diversificado de ações principais, urgentes e não-urgentes, através das quais os particulares se podem defender.

Ora, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias insere-se no quadro dos processos urgentes, previstos no Art. 36º CPTA (em concreto, no Art.36º, nº1, alínea e) CPTA) e regulados nos Arts.97º e ss. CPTA, estando  destinada a acautelar situações em que a celeridade da intervenção dos tribunais é exigida pelo interesse dos particulares, da Administração, ou de ambos, em ver resolvida rápida e definitivamente determinada situação litigiosa, sendo que obedecem a prazos mais curtos do que as não urgentes. Esta possibilidade assume dignidade constitucional, estando, desde logo, prevista pelo Art.268º, nº5 CRP, concretizando também o Art.20º, nº5 CRP, sufragando o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva o espírito do artigo abrange também a defesa de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, ex vi Art.17º CRP.

Através deste meio processual podem ser obtidas decisões que imponham à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, desde que para o efeito não se revele possível ou adequado recurso à tutela cautelar.

Para além disso, não há qualquer prazo para a propositura destas intimações, sendo que, assim que propostas, a sua tramitação é ultra-simplificada, como se extrai do Art.110º CPTA, podendo, inclusive, o juiz, em situações de especial urgência, dispensar a apresentação de contestação escrita por parte da Entidade Requerida, promovendo a sua audição através de qualquer meio ou promovendo a realização de uma audiência oral, no termo da qual é tomada a decisão de imediato.

4. Análise à Argumentação do Governo e Fundamentação Jurídica do Supremo Tribunal Administrativo

Relativamente ao primeiro ponto do sumário, este está intimamente ligado com a falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação destas matérias, alegada pela Presidência do Conselho de Ministros e, em concreto, com a querela doutrinária em volta do Art.73º, nº2 CPTA, que prevê que «quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.º 1 do Artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma, pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso.»

Na situação em apreço, o Autor vem, junto do Supremo Tribunal Administrativo, requerer declaração de inconstitucionalidade com efeitos apenas para si, sem força obrigatória geral, das normas da Resolução do Conselho de Ministros nº55-A/2020 supra mencionadas por considerar que estas atentam contra o seu direito à liberdade, de maneira a que lhe fossem desaplicadas.

Ora, estando em causa a apreciação da (in)constitucionalidade de vários dispositivos legais e de uma potencial declaração de inconstitucionalidade, faz sentido equacionar a hipótese de estarmos perante uma situação de reserva jurisdicional do Tribunal Constitucional, prevista nos Arts.221º, 281º e 282º CRP.

Uma certa fação doutrinária, na qual se inclui o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva, revela-se desfavorável ao desvio do Art.73º, nº2 à regra geral do nº1 CPTA, sufragando a sua inconstitucionalidade. Desde logo, por violar a reserva jurisdicional do Tribunal Constitucional em matérias jurídico-constitucionais, como dispõe o Art.221º CRP. Para além disso, por não fazer qualquer sentido que exista uma declaração de ilegalidade de uma norma geral e/ou abstrata, mas que só valha para aquele caso em concreto. Tal põe em causa o Estado de Direito, que surge logo no Art.2º CRP, e viola princípios constitucionais e do ordenamento jurídico como o princípio da legalidade, da igualdade, da certeza e da segurança jurídica, porque se permite a subsistência de uma norma após declaração de ilegalidade por decisão judicial e a aplicação dessa norma aos seus destinatários enquanto se a se desaplica a um caso e a um/uns destinatário(s) concreto(s).

Já uma corrente doutrinária mais legalista defende a conformidade do Art.73º, nº2 à Lei Fundamental, na medida em que os tribunais administrativos podem, efetivamente, efetuar o controlo difuso de fiscalização concreta – Art.280º CRP, constituindo a declaração de inconstitucionalidade de normas com força obrigatória geral reserva jurisdicional do Tribunal Constitucional, nos termos do Art.281º CRP. Este entendimento parece ser apoiado pelo Supremo Tribunal Administrativo, pois, realça que este pedido de declaração de ilegalidade pretende apenas produzir efeitos pessoais e não gerais, estando o Autor ciente disso, sendo a desaplicação da norma a única forma, na sua opinião, de acautelar os seus direitos.

Apesar de compreender esta linha de pensamento e de ter presente que se trata de um mecanismo de última ratio, concordo com o Sr. Professor Regente, na medida em que esta possibilidade traz grandes problemas, a nível do princípio da igualdade e de segurança jurídica.

No referente à ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, cabe analisar o Art.10º, nº2 CPTA, que estabelece como regra geral que nos processos intentados contra entidades públicas, a parte demandada é a pessoa coletiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado, em que a parte demandada é o ministério ou ministérios. Tendo presente que o diploma em causa é uma Resolução do Conselho de Ministro, no entendimento do Professor Mário Aroso de Almeida, quando esteja em causa o Conselho de Ministros, a parte demandada deve ser a Presidência do Conselho de Ministros, porque é esta que dá apoio técnico ao Conselho de Ministros, suportando-o por inerência, não existindo uma realidade sem a outra. Todavia, na linha de pensamento mais abrangente do Professor Mário Esteves de Oliveira, a parte demandada pode ser o próprio Conselho de Ministros ou até mesmo o Primeiro-Ministro. Assim sendo, entende-se que não há qualquer ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, concordando-se com a posição adotada pelo STA.

Quanto à incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para apreciar o segundo pedido de condenação da Presidência do Conselho de Ministros ao exercício da sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas, estamos perante a imposição da adoção de uma determinada conduta ao agir administrativo, designadamente em pedir que as forças de segurança não impeçam ajuntamentos públicos com mais de 10 ou 20 pessoas, em que o Autor venha a participar, quando a Resolução pretende investir as autoridades destes mesmos poderes. Em primeiro lugar, seria necessário demandar, de acordo com o Art.21º, nº1 CPTA o Ministro responsável pela tutela das forças policiais. Em segundo, o STA é competente para apreciar o segundo pedido, visto que tem competência relativamente ao primeiro. Por último e por ser competente, o STA considerou, justamente, esta pretensão do Autor «inútil», por ser uma pretensão, que a ser atendida, seria já consequência da eventual procedência do primeiro pedido.

No que toca à impropriedade do meio processual para a defesa dos direitos do Autor, penso que o processo urgente de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual idóneo para a obtenção de uma tutela útil e célere de direitos, liberdades e garantias, na sequência de uma potencial atuação lesiva da Administração, como parece ser aqui o caso. Por um lado, porque estamos efetivamente perante um pedido urgente, visto que as normas são de aplicação imediata, lesando imediatamente o Requerente e, por outro, porque a sua aplicação está temporalmente restringida, consoante a evolução epidemiológica na Área Metropolitana de Lisboa, fazendo sentido o pedido ser apreciado de forma urgente, para que se possa desaplicar as normas em causa ao Requerente, de modo a afastar a lesão em tempo útil. Desta perspetiva, considero, portanto, não existir qualquer impropriedade processual no recurso a este meio de defesa, estando a pretensão do Autor perfeitamente enquadrada na ratio deste mecanismo, que opera como válvula de escape.

Por último, analisando o ponto segundo do Sumário relativo à apreciação dos pressupostos da intimação de direitos liberdades e garantias pelo STA, após se considerarem improcedentes todas as exceções invocadas pelo Requerido, estes surgem, desde logo, no Art.109º CPTA.

Na letra do nº1, podemos logo verificar que o recurso a este mecanismo se funda na urgência de uma decisão de mérito, de modo a evitar a lesão concreta de um direito ou interesse legalmente protegido ou a sua mera inutilização, como costuma afirmar o Professor Regente, impondo à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que se revele indispensável para esse fim, por não ser possível ou suficientes, nas circunstâncias do caso concreto, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no Art.131º CPTA. Ora, a urgência de uma decisão de mérito, nesta situação, estava preenchida como já supra mencionado, consistindo o pedido do Requerente numa imposição à Administração da adoção de uma conduta negativa, que, na sua ótica, se revelava indispensável para assegurar o seu direito à liberdade. Importava, então, averiguar se era possível ou não a tutela cautelar. O STA alegou que estando em causa normas com vigência temporal limitada e de aplicação imediata, a tutela cautelar não seria bastante, sendo necessária uma efetiva decisão de mérito, dado que a tutela cautelar tem caráter instrumental e provisório, não fazendo grande sentido recorrer a ela, nesta sede, quando é necessária a resolução de um litígio em tempo útil, sendo que ele se reconduz a uma lesão que existe num período de tempo muito limitado.

Em virtude dos aspetos mencionados, considero a decisão do Supremo Tribunal Administrativo bastante assertiva, por um lado, por julgar improcedente o primeiro pedido do Requerente e inútil o segundo, pois, apesar de não existir qualquer impropriedade do meio processual, não existia qualquer lesão iminente de direitos, liberdades e garantias e também correto em julgar improcedentes as exceções invocadas pelo Requerido, visto que a sua defesa processual não tinha apoio legal e factual.

 

5. Bibliografia 

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 4ª edição, Almedina, 2020;

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Reimpressão da 2ª Edição, Almedina, 2009;

SILVA, Vasco Pereira da, em sede de aula téorica.

Acórdão STA de 10 de setembro de 2020 disponível no sítio http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6a509a0b01993cfb802585e600446990?OpenDocument&ExpandSection=1 


Inês Borges Loureiro, 4ºA, ST3, nº58427 


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