Arbitragem Administrativa pré-contratual – Problemas de Autoestima

 

Introdução

O processo administrativo não se desenlaça apenas perante tribunais administrativos que integram a estrutura organizada do Estado, mas também perante tribunais arbitrais. Não vigora em Portugal uma reserva de jurisdição estadual, no respeitante a litígios que envolvam a Administração Pública; assim deve ser interpretado o respeitante no artigo 212º/3 da Constituição da República Portuguesa. O artigo 209º da CRP, ao afirmar as categorias de tribunais, vai mais longe que outros ordenamentos jurídicos, consagrando, de modo inequívoco, a natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais.

Esta arbitragem de Direito administrativo, não se funda em qualquer critério de disponibilidade de matérias passiveis de serem submetidas a arbitragem, mas, pelo contrário, na natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais e na subordinação dos árbitros à Lei e ao Direito.

Para efeitos desta pequena exposição, tentaremos abordar, ainda que de forma simples, a polémica em torno do artigo 476 do Código dos Contratos públicos (CCP), a sua relação com o artigo 180º/3[1] do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), o impacto da Lei nº118/2019, quer na modificação ao próprio artigo 180º/3[2], quer no tocante à aplicação do regime de urgência previsto para o contencioso pré-contratual face aos atos administrativos impugnados em sede arbitral, tal como descrito nos termos do artigo 180/3 a) CPTA.


Evolução arbitral

As mudanças a que temos assistido nos últimos anos no seio arbitral público, permitem-nos, nas palavras do professor Tiago Serrão falar numa “revolução arbitral”[3], da qual será possível destacar inúmeros degraus.

Estes degraus, essenciais a ventos de mudança, são-nos revelados essencialmente em 4 momentos: O primeiro, pelo decreto-lei n-10/2011, de 20 de janeiro; Um segundo momento, pela aprovação da nova Lei da arbitragem voluntária, que vem atribuir capacidade ao Estado e às pessoas coletivas de direito público. Um terceiro momento, de alteração, do disposto nos artigos 180 a 187 do Código de processo nos Tribunais administrativos, sendo uma dessas alterações destinadas ao artigo 180/3 do CPTA respeitante à arbitrariedade de atos pré-contratuais. Por fim, a alteração do preceituado no artigo 180/3 do CPTA, na sua redação de DL nº 214-G/2015, de 2 de outubro, para aquilo que consta agora da Lei nº118/2019, de 17 de setembro.

 

O artigo 476 CCP [4]e 180/3[5] CPTA: Um regime dual?

Cumpre nesta sede, abordar a natureza da arbitragem prevista no artigo 476º CCP revisto e a sua (in)coerência face ao disposto no artigo 180/3 CPTA. Num primeiro olhar, parece ter sido opção do legislador, prever uma arbitragem necessária plasmada no artigo 476º/2 CCP. Relativamente ao nº3 do mesmo artigo parece ser de natureza necessária, porque aos destinatários da decisão da entidade adjudicante relativa à escolha deste modelo arbitral, não é dada liberdade de recorrer a outro meio de resolução de eventuais litígios pré-contratuais, sendo antes obrigados a aceitá-lo, caso pretendam intervir no procedimento. Marco Caldeira entende que esta tomada de posição não deve ser condicionada, dado o facto de o interessado poder recusar a arbitragem, não participando no concurso. Pelo contrário, deverá antes ter em conta a liberdade de, participando efetivamente no concurso, poder optar ou não pela via arbitral.

Mas não deixa de nos surgir uma questão: Não se revela juridicamente problemático, face ao princípio da concorrência, devidamente conjugado com o princípio da proporcionalidade, que se vede a entrada de sujeitos a procedimentos pré-contratuais, pelo simples facto de tais participantes (e hipotéticos futuros cocontratantes) não concordarem com o recurso à arbitragem, no que se refere a eventuais litígios pré-contratuais e contratuais?[6] Não se encontrará, a sua liberdade, claramente condicionada, pois, desejando participar num determinado procedimento pré-contratual em que foi efetuada tal opção, inexiste margem de não aceitação da mesma[7]”?

Analisando o plano constitucional, mesmo que se admita que a Constituição não impede a existência de tribunais arbitrais necessários, tal não significa que a lei possa admitir a imposição da via arbitral por ato do poder público sem que haja razões jurídicas ponderosas para justificar o afastamento da jurisdição estadual sem a correspondente convenção de arbitragem livremente acordada entre as partes.

Entendimento diferente tem João Miranda, dado que para o autor, o artigo 476º/2 CCP não tem necessariamente de chocar com o disposto no artigo 180 CPTA, na medida em que este nos diz que “quando existam contrainteressados, a regularidade da constituição de tribunal arbitral depende da sua aceitação de compromisso arbitral”. Nesta linha nada impede que, outros contrainteressados, que não coincidam com os já pré-determinados, possam requerer uma intervenção posterior[8]. Parece também este ser o entendimento do professor João Tiago Silveira[9]. O 476º/2 CCP não valerá para todos os interessados, pelo menos não de forma vinculada. A ratio do preceito não abarca terceiros titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos que pretendam impugnar o procedimento concursal. Aqui já não poderá a entidade adjudicante fazer prevalecer a sua escolha pela via arbitral, podendo os interessados recorrer aos tribunais administrativos. Sustenta ainda o professor que o preceito em causa cumpre com as condições previstas no 180º/3 CPTA, vindo a especificar as três condições deste artigo.

Em qualquer caso, seja qual for o entendimento relativo à natureza desta arbitragem prevista no preceito, o artigo 476º/5 CCP, parece ser parcialmente inconstitucional por não prever justamente “recurso de decisões arbitrais quanto a valores iguais ou inferiores a 500.000€[10][11]”, privando assim as partes do direito ao recurso quando a causa não ultrapasse o referido limiar[12]. Não violará isto, o principio da igualdade e do acesso à justiça? O artigo 212.º/3 CRP, quando reserva para os tribunais administrativos a competência para “o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”, deve ser encarado como o guia orientador da regra geral, pelo qual o legislador ordinário poderá pontuar de exceções, sempre com a ressalva de não estar a esvaziar o âmbito e, sobretudo, o núcleo essencial, constitucionalmente protegido para a competência dos tribunais administrativos. Quando é que ocorrem e como se revestem tais exceções? Quando o legislador atribui a tribunais de outra ordem jurisdicional a competência para dirimir litígios jurídico-administrativos. Não parece ser idêntica, a atuação do legislador, permitir a constituição de tribunais arbitrais em domínios pertencentes ao contencioso administrativo.

Não queremos com isto dizer, que a reserva de jurisdição administrativa só vale na relação entre tribunais administrativos e outros tribunais estaduais. Mas fará sentido desproteger de recurso quando a causa não ultrapasse o referido limiar? Pensamos que o legislador teve isto em atenção com a Lei nº118/2019.

 

O Novo 180º/3 CPTA

Com a nova redação deste preceito, que mesmo assim, não deixa de ter os seus críticos[13], destacamos o facto do atual 180º/3, al. b) CPTA, na sua parte final permitir a apresentação, por um dos participantes, da declaração aí referida, beneficiando os restantes, uma vez que de acordo com o disposto, se um dos concorrentes a apresentar, haverá suficiência para que os restantes possam recorrer, em momento posterior para o tribunal estadual competente. A isto acresce uma coerência plasmada entre esta mesma alínea do CPTA com o disposto no 476º/5 CCP, assegurando ambos, através do valor estabelecido, uma sintonia na sua abordagem.

Não parece ser o entendimento favorável de Mário Aroso de Almeida, uma vez que, com o previsto no CCP, nos litígios de valor superior a 500.000€, cabe recurso das decisões arbitrais para o tribunal administrativo competente, com efeito meramente devolutivo; com a revisão de 2019 ao 180/3 CPTA, veio, acrescentar-se que, mesmo abaixo desse valor, também cabe recurso urgente, com efeito meramente devolutivo, mediante as condições previstas na alínea b) do mesmo preceito. Reforça o autor que, na prática, poderá implicar que nunca venha a haver arbitragem pré-contratual administrativa sem salvaguarda da possibilidade de recurso das decisões arbitrais para o tribunal central administrativo

 

180/3 a) – conformidade com o regime de urgência pré-contencioso – efeito suspensivo automático?

Diz-nos o artigo 180/3 a) que o regime processual a aplicar perante impugnação de atos administrativos relativos à formação de algum dos contratos previstos no artigo 100º CPTA deve ser estabelecido em conformidade com o regime de urgência previsto para o contencioso pré-contratual. Como bem frisa Mário Aroso de Almeida, os contratos em causa, protegidos pelas diretivas europeias de contratação pública, no âmbito arbitral, devem ser assegurados pelo efeito suspensivo automático da impugnação do ato de adjudicação[14] (103º-A/1). Ora, também esta norma foi alvo de modificação[15], o que se reflete neste procedimento, dado o seu caracter urgente. Quais as diferenças desta nova redação quanto ao efeito automático face ao disposto anteriormente? Na revisão de 2019, o novo n.º 1 do artigo 103º-A do CPTA estabelece que “as ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais seja aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”. 

Daqui podemos retirar que o legislador optou por promover uma redução do âmbito de aplicação do efeito suspensivo automático, talvez pelos desequilíbrios despontados pela anterior redação. Esta redução acaba por se refletir em dois principais pontos: em primeiro lugar, no facto de tal efeito apenas se produzir quando esteja em causa a impugnação de um ato de adjudicação praticado no âmbito de um procedimento pré-contratual, no qual o CCP demande a existência de um período de standstill. Em segundo lugar, a nível temporal, tal efeito suspensivo automático apenas operará quando a ação de impugnação do ato de adjudicação seja intentada dentro desse mesmo período de standstil.

Marco Caldeira[16] e Rodrigo Esteves de Oliveira, propõem então três pressupostos que necessitam de ser cumulados com vista a poder colocar em prática o efeito suspensivo. Primeiramente, que a ação se destine à impugnação da decisão de adjudicação, tal como previsto na letra do 103º-A/1; em segundo lugar, que o ato de adjudicação a impugnar tenha sido praticado num procedimento pré-contratual onde seja imposta a observância de um prazo de standstill entre a adjudicação e a celebração (ou o início da execução) do contrato. Esta abordagem tem implicâncias relativas ao CCP, nomeadamente o facto de ter de estar em causa um procedimento pré-contratual com publicidade internacional, uma vez que o prazo de 10 dias não se aplica se não tiver sido publicado anúncio do procedimento no Jornal Oficial da União Europeia[17] e que a proposta adjudicada não tenha sido isoladamente apresentada nesse procedimento.[18]  Por fim, que a ação seja intentada no prazo de 10 dias úteis desde a notificação da decisão de adjudicação[19].

Do outro lado da moeda, relativamente à entidade adjudicante e aos contrainteressados, no que diz respeito ao levantamento deste efeito suspensivo, a revisão de 2019 parece não se ter esquecido da sua regulação, assentando algumas incógnitas que pairavam em momento ulterior. Com a reforma de 2015, o nº2 do artigo 103º-A, remetia a decisão de tal levantamento para o disposto no artigo 120º, n.º 2 do CPTA, possuidor de critérios de decisão. O legislador, com esta modificação de 2019, abandona tal remissão[20], ficando como critério preponderante, o preceituado no n.º 4 do artigo 103º-A, que adota a anterior redação do n.º 2, prevendo que “o efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos”.

Fica assim bem patente o equilíbrio proporcionado pela revisão, dada a ambição do legislador de 2015, aquando da transposição das diretivas. Desta feita, a proteção e efetiva tutela, equilibrada, das partes, parece ir ao encontro das principais preocupações ao nível de procedimento de contratação pública. 

 

Conclusão

Com esta exposição, não podemos deixar de concluir que, a revisão de 2019 veio de facto atenuar algumas problemáticas relativas à arbitragem, nomeadamente no tocante à harmonização entre CCP e CPTA em matéria arbitral, no referente aos preceitos tratados.

Quanto à natureza da arbitragem, a nosso ver Necessária, destacamos a abordagem do professor Marco Caldeira, no sentido de que não se pode considerar de natureza voluntária uma arbitragem que limita o poder de decisão de uma das partes, os concorrentes, pela via arbitral à sua participação no concurso ou não, consubstanciando esta uma condição do procedimento concursal.

Por outro lado, não podemos deixar de destacar, como bem realça Mário Aroso de Almeida e Marco Caldeira que, o valor estabelecido em ambos os preceitos, parece fundamentar-se, simplesmente, “num meio de prover à morosidade da primeira instância dos tribunais estatais[21]” (em virtude da admissibilidade com grande latitude dos recursos), o que  traduz, “objetivamente (…), uma manifestação de desconfiança do legislador face à arbitragem (mesmo institucionalizada): o legislador confia na arbitragem para a resolução da generalidade dos litígios, mas recusa-se a dar-lhe a única (ou a última) palavra.

Quanto ao regime urgente, em concreto a possibilidade de efeito suspensivo automático, por remissão do 180º/3 al. A), a revisão de 2019, mostrou-se também ela, no meu entender, positiva, não só pelo equilíbrio que veio trazer mas também pela clarificação da sua aplicação, segundo um critério que, embora discutível, se demonstra mais prático e mais conforme ao objetivo da diretiva de recursos de 2007.

Por fim, uma pequena “achega” ao legislador. Tendo o artigo 476º CCP adotado um regime que concede preferência à arbitragem institucionalizada e tendo por base, a ideia da crescente especialização das regras sobre arbitragem administrativa que o atual artigo 180º/3 CPTA vem acentuar, não seria já “hora” de a dita arbitragem, vir reclamar uma sede própria, em detrimento das normas dispersas que atualmente a regulam? Pensamos que sim.



[1] Análise do 180/3 abarcará, numa primeira fase, a versão na redação do DL nº 214-G/2015, de 2 de outubro

[2] redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro – a que vigora atualmente.

[3]  SERRÃO, Tiago, “A Arbitragem no CPTA revisto: primeiras impressões” in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA (coordenação: Carla Amado Gomes/Ana Fernanda Neves/Tiago Serrão), AAFDL Editora, Lisboa, 3º Edição, 2017, página 475. 

[4] Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto

[5] Redação do DL nº 214-G/2015

[6] Tiago Serrão, Considerações sumárias sobre a arbitragem no CCP revisto, p. 95 – cfr. ainda, na mesma linha, com base na ideia de uma exigência desproporcional, Ricardo Guimarães, A arbitragem e a revisão do CCP, p. 92.

[7] Tiago Serrão, Considerações sumárias sobre a arbitragem no CCP revisto, p. 94.

[8] MIRANDA, João, “Arbitragem e Contratação Pública – brevíssimas notas” in Revista de Direito Administrativo, nº 1, AAFDL editora, Lisboa, janeiro-abril de 2018, página 58. 

[9] SILVEIRA, João Tiago, “A Arbitragem e o artigo 476º na revisão do Código dos Contratos Públicos” in Revista de Direito Administrativo, nº 1, AAFDL editora, Lisboa, janeiro-abril de 2018, página 60. 

[10] Note-se que a parcial inconstitucionalidade em causa surge da análise à data de 2017, dada a redação do artigo 180/3, pelo DL nº 214-G/2015. Talvez tenha sida esta, a ideia subjacente à modificação do 180/3 em 2019, prevendo na sua alínea b) o “recurso de decisões arbitrais quanto a valores iguais ou inferiores a 500.000€, que mais à frente abordaremos.

[11] João Tiago Silveira, A arbitragem e o artigo 476.º na revisão do CCP, pp. 63-64.

[12] Marco Caldeira, A arbitragem no CCP revisto, pp. 316-317 – cfr. ainda Ricardo Guimarães, A arbitragem e a revisão do CCP, pp. 91-92; Paulo Pereira Gouveia, Arbitragem administrativa e CCP: dissidentes da boa administração do interesse público, pp. 80-81.

[13] Mário Aroso de Almeida, “Manual do Processo Administrativo”, 4ª edição, 2020, p.540

[14] Aroso de Almeida, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 4ª edição,2020, p.540

[15] Lei nº 118/2019, de 17 de setembro. 

[16] MARCO CALDEIRA, Estudos sobre o contencioso pré-contratual, AAFDL, Lisboa, 2017; e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A tutela “cautelar” ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 115, Janeiro/Fevereiro de 2016; 

[17] Artigos 95º, n.º 4, alínea a) e 104.º, n.º 2, alínea a) do Código dos Contratos Públicos

[18] Artigos 95º, n.º 4, alínea d) e 104.º, n.º 2, alínea c) do Código dos Contratos Públicos

[19] Artigos 95º, n.º 3 e 104º, n.º 1, alínea a) do Código dos Contratos Públicos

[20] Criticável por parecer deixar ao artigo uma dupla resolução da situação, plasmada nos números 2 e 4 do artigo em questão.

[21] Pedro Leite Alves, A arbitragem de Direito Público, pp. 84-85


Tomás Rodrigues

Aluno 59164 da Faculdade de Direito de Lisboa

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