Comentário ao Acórdão do STA de 10-09-2020

    O acórdão em causa versa sobre a instauração de uma intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias contra a Presidência do Conselho de Ministros, pedindo o requerente a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos constantes da Resolução do Conselho de Ministros nº55-A/2020 e a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o requerente e as pessoas que com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião.

    O requerente peticiona a impugnação da redação em vigor na data da propositura da intimação “de quaisquer normas análogas que venham a ser aprovadas por renovação do conteúdo da Resolução (…) em crise”.  Como fundamento do pedido, o requerente invoca a violação do seu direito fundamental de organizar e participar em “reuniões de amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques”, isto porque as normas da Resolução em causa proíbem quaisquer ajuntamentos com mais de 10 ou 20 pessoas em espaços públicos.

    Este instituto está plasmado no artigo 109º e ss. do CPTA e visa garantir uma tutela acrescida dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pela especial ligação destes direitos à dignidade da pessoa humana e pela consciência do risco acrescido da respetiva lesão nas sociedades atuais. Este meio processual com caráter urgente – urgência essa que assume um caráter relativo, uma vez que têm de ser apreciadas as circunstâncias do caso em concreto, avaliadas de acordo com critérios específicos e considerando a situação de necessidade do requerente da intimação - decorre da imposição constitucional prevista no artigo 20º/5 da CRP.

    Segundo o Professor Mário Aroso de Almeida, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é “um instrumento que se procurou desenhar com uma grande elasticidade, que o juiz deverá dosear em função da intensidade da urgência, e que tanto poderá seguir os termos da ação administrativa especial, com os prazos reduzidos a metade, como, em situações de especial urgência, poderá conduzir a uma tomada de decisão em 48 horas, mediante audição oral das partes.”[1]

A intimação atua como conditio sine qua non para proporcionar o exercício de um direito em tempo útil. Para que a intimação seja procedente, é primordial que o requerente alegue e prove sumariamente que um direito seu carece de ser assegurado em tempo útil (sob pena de inutilidade da intimação). Como concluiu o Acórdão de 18-06-2020 do Tribunal Central Administrativo Sul, “O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 109.º do CPTA, destina-se a cobrir situações que exigem um especial amparo jurisdicional, por não se mostrar adequada, por impossibilidade ou insuficiência, a protecção jurídica que os demais meios urgentes conferem. E só é legítimo a ele recorrer quando esteja em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de um direito, liberdade ou garantia (ou de um direito fundamental de natureza análoga) cuja protecção seja urgente.”[2]

Nesta senda, é requisito elementar para ser procedente a intimação que se esteja perante um direito, liberdade ou garantia cuja proteção se verifique necessária, e que a tutela derivada de uma providência cautelar não se verifique suficiente, conforme resulta do nº1 do artigo 109º do CPTA.

No presente caso, parece que se preenchem todos os pressupostos para considerar como validamente intentada a intimação, isto porque o requerente alega a violação de direitos fundamentais, com base na Resolução do Conselho de Ministros nº55-A/2020. O direito do requerente só é passível de ser protegido se a decisão de mérito for proferida em tempo útil, e se revele indispensável para assegurar o exercício desse direito. Por último, a decretação de uma providência cautelar não parece suficiente, uma vez que, neste caso, se afigura necessária uma decisão definitiva, ao invés de uma decisão provisória, pois esta não se revela bastante para satisfazer as necessidades de tutela do particular.

A utilização deste meio processual requer indispensavelmente que o autor seja parte legítima para intentar a ação, nos termos do artigo 9º/1 do CPTA, isto porque, e conforme constata o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 31-10-2020 “As normas do CPTA que regulam a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias não identificam de forma expressa quem tem legitimidade activa para a propor. Cabe, deste modo, convocar o princípio geral em matéria de legitimidade activa que consta do n.º 1 do artigo 9.º do CPTA.”[3]

Por sua vez, no que toca à legitimidade passiva, esta diz respeito à Administração ou a outras entidades que exerçam funções materialmente administrativas, como os concessionários, conforme resulta do nº 1 e 2 do artigo 109º do CPTA. Nestes termos, a legitimidade passiva pertence ao órgão administrativo que esteja a colocar em causa o exercício de um direito fundamental.

Relativamente à competência, a mesma cabe aos tribunais administrativos de círculo para tomar conhecimento dos pedidos de intimação em 1ª instância, conforme resulta do artigo 44º/1 do ETAF, não obstante ser também competente o Supremo Tribunal Administrativo quando a intimação tenha como contraparte uma das referidas no artigo 24º do ETAF.

No caso em apreço, uma vez que que a intimação é interposta contra a Presidência do Conselho de Ministros, verifica-se que a competência, a priori, cabe ao STA, por força do artigo 24º/1/a/iii do ETAF.

Ora, a decisão que ponha termo a um processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias tem, normalmente, um efeito de tipo declarativo condenatório, sendo que o tribunal irá dirigir uma injunção ao requerido para que este exerça uma determinada conduta.

No caso em apreço, o requerente socorre-se de uma intimação para proteção de direitos liberdades e garantias com o fim de obter a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, o que, no entender da Requerida não pode acontecer, uma vez que a intimação pode apenas ter como resultado uma sentença condenatória, não podendo ser utilizado como meio impugnatório.

Efetivamente, o meio previsto no artigo 109º e ss. do CPTA consubstancia um instrumento de grande elasticidade, como foi supradito, o que permite abarcar as mais diversas situações desde que as mesmas se reportem a direitos fundamentais.

Nestes termos, ainda que não nos pareça viável a pretensão do requerente, tal não obsta a que o meio processual não seja adequado, isto porque, na verdade, este parece-nos ser o único que garante uma resposta em tempo útil.

Como se diz no Acórdão, “este é o meio adequado para obter a tutela urgente perante a alegada lesão de direitos, liberdades e garantias que não possam ser garantidos pela via da tutela cautelar, redundando sempre a decisão na imposição à Administração da adoção de uma conduta, positiva ou negativa, mesmo que essa decisão, como sucede aqui, seja funcionalmente equivalente à desaplicação de uma norma imediatamente operativa.”

A ratio da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias verifica-se como sendo a decisão de mérito realizada em tempo útil, com vista a garantir a efetiva proteção do direito alegado pelo requerente. Assim se compreende que este tenha optado pela interposição de uma intimação, uma vez que o direito alegado carecia de tutela urgente.

Deste modo, a elasticidade que está subjacente à figura da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, permite ao requerente fazer este tipo de pedido, atendendo ao facto de que seria este o meio que poderia acautelar de modo efetivo a lesão do direito fundamental e se cinja ao necessário para esse efeito.


Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017


Sónia Duarte, nº57315

 

 

 

 



[1] ALMEIDA, Mário Aroso de, - Manual de Processo Administrativo – pg. 400

[2] Processo nº334/20.8BELSB, disponível em www.dgsi.pt

[3] Processo nº 01958/20.9BELSB, disponível em www.dgsi.pt

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