Comentário ao Acórdão do STA de 10 Setembro de 2020

 

Comentário ao Acórdão do STA de 10 Setembro de 2020[1]


I - A declaração de ilegalidade de normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto pode ter como fundamento a violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no âmbito de um processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias;


II - A apreciação dos pressupostos processuais no âmbito da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias tem de atentar nas especiais características deste meio processual enquanto instrumento, entre nós, de obtenção de amparo constitucional;[2]

 

Quanto ao primeiro ponto do sumário, visa o mesmo pronunciar-se, em resumo, sobre o pedido do Autor onde pelo mesmo é requerida a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos resultantes de uma Resolução do Conselho de Ministros.

Ora, entendeu o STA que a declaração de ilegalidade de normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto, é permitida com fundamento na violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no âmbito de um processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias.

Relativamente à questão do pedido se referir à declaração de inconstitucionalidade de normas imediatamente operativas, mostra-se importante esclarecer o que se entende por normas imediatamente operativas. Estas são normas que no fundo não dependem de um ato administrativo ou jurisdicional para produzirem os seus efeitos.

Esclarecido o conceito de normas imediatamente operativas, mostra-se ainda necessário discutir a outra questão esplanada no pedido, a questão de os efeitos serem circunscritos ao caso concreto.

Ora, apesar do art. 73º/2 Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) prever esta possibilidade de desaplicação da norma, através do pedido de declaração da sua ilegalidade com efeito circunscrito ao seu caso. No que diz respeito a este tema, o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva considera que não faz sentido que um processo destinado a apreciar a legalidade de um regulamento/resolução, a título principal, tenha como resultado, verificada a existência desse vício, uma declaração de ilegalidade de uma norma geral e/ou abstrata, mas que só vale para aquele caso concreto, além do mais, o conceito de “caso concreto” não é propriamente um conceito claro.

Ainda relativamente ao art. 73º/2, é de extrema relevância referir que este invoca a possibilidade de um particular se defender judicialmente invocando, para o efeito, qualquer um dos fundamentos de ilegalidade previstos no art. 281º/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Deste modo, e ainda no âmbito do primeiro ponto do sumário, o fundamento apresentado (violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no âmbito de um processo urgente de intimação para a proteção de direitos liberdades e garantias), de acordo com o art. 73º/2 CTPA, só é admitido se os fundamentos invocados constarem do elenco previsto no 281º/1 da CRP, entre eles, e como é o caso, o fundamento de ilegalidade da resolução do conselho de ministros enquadrado pela  alínea b) do referido artigo da CRP, pois o fundamento consiste na violação de normas e princípios constitucionais, sendo a CRP uma lei de valor reforçado, mais, a CRP é o corolário do nosso Estado de Direito, e por essa razão inviolável.

Relativamente ao segundo ponto do sumário, que consiste na apreciação dos pressupostos processuais no âmbito da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias tem de se atentar nas especiais características deste meio processual enquanto instrumento, entre nós, de obtenção de amparo constitucional, o qual será esclarecido aquando abordada a fundamentação da defesa.

Referidos os dois pontos de maior interesse do sumário, importa transpor aqui o pedido do Requerente:

i) a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas da conjugação dos pontos 1, 2 e 8 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020 e ainda a que se encontra no art. 15.º do Anexo àquela Resolução e, bem assim, de quaisquer normas análogas que viessem a ser aprovadas por renovação do conteúdo da mencionada Resolução; e ii) a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerente e as pessoas que com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião.

Já a Requerida faz uma defesa por exceção, alegando falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, impropriedade do meio processual e incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para decidir do segundo pedido; e, por impugnação, sustentando a conformidade constitucional das normas impugnadas.

No que diz respeito à defesa serão apenas abordados os dois primeiros fundamentos. Começando pelo primeiro, apesar de este já ter sido de algum modo referido mais acima, veja-se que, independentemente dos argumentos doutrinários relativos ao art. 73º/2 CPTA, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) entende que existe a possibilidade que qualquer lesado por uma norma imediatamente operativa poder obter tutela jurisdicional, neste caso, mediante a desaplicação da mesma norma, com efeitos circunscritos ao caso concreto.

O STA acrescenta ainda que o meio processual utilizado pelo Requerente constitui a única forma de se assegurar a exequibilidade do artigo 268º/5 CRP, norma constitucional esta, de aplicabilidade direta.

Quando a Requerida alega a falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, pressupõem-se então que este pedido seria da competência do Tribunal Constitucional (TC).

Porém, o STA entende que da admissão do pedido não decorre uma violação da reserva da jurisdição constitucional. Neste sentido, por o pedido se circunscrever à declaração de inconstitucionalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto, faz com que estejamos perante uma desaplicação de uma norma ao caso concreto e não perante uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, caso em que haveria reserva de competência do TC.

No caso, o objeto do processo intentado nos tribunais administrativos é o controlo dos efeitos imediatos que a norma imediatamente operativa produz na esfera jurídica do Requerente, o lesado. Isto é, o objeto não se trata de um juízo normativo de desvalor constitucional.

Em suma, a defesa da Requerida com base na falta de jurisdição do STA, não nos parece ter fundamento, pois de acordo com o explanado, por estarmos perante um caso de declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, afasta a exceção invocada pela Requerida neste caso em análise. Ora, neste sentido, o STA é materialmente competente para julgar o caso em apreço, sendo assim improcedente a exceção invocada pela Requerida.

Quanto à ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, alegada pela Requerida, consideramos que esta deve proceder quando argumenta que o autor da Resolução é o Conselho de Ministros e não a Presidência do Conselho de Ministros, porém a o STA alega que a especificidade do processo justifica a primazia da decisão, considerando que não está verificada a exceção de ilegitimidade passiva.

Ora, de acordo com o art. 10º do CPTA, tem legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o objeto configurado pelo autor, neste caso o Autor demanda a Presidência do Conselho de Ministros. Porém, quem tem legitimidade passiva neste caso não é a Presidência do Conselho de Ministros, mas sim o Conselho de Ministros. Ora, mesmo não tendo a Presidência legitimidade passiva, o STA pronunciou-se no sentido de admitir o lapso do Autor por considerar que este se torna irrelevante quando confrontado com outros valores. Deste modo, por estarmos no âmbito de uma intimação para a proteção de direitos liberdades e garantias (artigo 109º do CPTA), onde o dever de gestão processual é ainda de maior importância, e ainda por estarmos perante um processo que tem também como função instrumental  amparar os  lesados nos seus direitos constitucionalmente consagrados (artigos 18º, 22º/5, 268º/4/5 CRP), o STA considera que deve ser de ignorar a diligencia processual dilatória que coloca em causa os fundamentos anteriormente explanados. A tudo isto deverá sempre juntar-se um dos pilares do Estado de Direito Democrático de que a justiça deve ser célere (artigo 20º da CRP).

Em conclusão, no que concerne à competência material do STA para julgar o caso em apreço, a exceção de competência invocada pela Requerida não foi julgada procedente, tendo o STA considerado ser competente para o julgamento da causa.  Porém quanto à ilegitimidade passiva, pese embora o STA tenha considerado poder a mesma existir, atendendo ao princípio da economia processual e direito a uma justiça célere, considerou não atender a tal exceção, considerando ainda a natureza urgente do processo em causa.

 

Bibliografia:

-      ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2020.

-       SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, Almedina, 2016.

-      ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2020.

 

Margarida Bello Dias, nº58214

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Análise do Acórdão do STA de 10 de Setembro de 2020

O Regime Jurídico da Tutela Cautelar

Os contrainteressados - Relevância da figura no contencioso administrativo e o problma da determinação dos mesmos.