Comentário ao Acórdão do STA de 10/09/2020
O presente texto incidirá sobre
os dois primeiros pontos do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo de 10 de setembro de 2020, Processo 088/20.8BALSB.
Iniciando com um breve
resumo do disposto no acórdão, A., Requerente, intentou no Supremo Tribunal
Administrativo, Requerida, uma intimação para a proteção de direitos liberdade
e garantias contra a Presidência do Conselho de Ministros pedido a declaração
de inconstitucionalidade com efeitos circunscritos a si das normas proibitivas de ajuntamentos, com
um pedido de declaração de ilegalidade por inconstitucionalidade das normas que
o proibiam, assim como a condenação da Presidência do Conselho de Ministros
para que esta não permitisse que as forças policiais e demais autoridades
públicas impedissem o Requerente e as pessoas com quem este venha a estar
reunidas de exercer plenamente o seu direito a reunião e ajuntamentos. A
Presidência do Conselho de Ministros veio apresentar a sua defesa por exceção,
alegando a falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, a sua
ilegitimidade passiva, a impropriedade do meio processual e a incompetência
hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo; já por impugnação sustentou a
conformidade constitucional das normas impugnadas.
Os pontos a analisar do
sumário do acórdão referem o seguinte:
I - A declaração de
ilegalidade de normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao
caso concreto pode ter como fundamento a violação de normas e princípios
constitucionais, sobretudo se esse pedido visa a desaplicação ao requerente de
uma medida proibitiva no âmbito de um processo urgente de intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias;
II - A apreciação dos
pressupostos processuais no âmbito da intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias tem de atentar nas especiais características deste meio
processual enquanto instrumento, entre nós, de obtenção de amparo
constitucional;
No primeiro ponto, cumpre
esclarecer a questão das normas imediatamente operativas. Estas caraterizam-se
por serem normas que não necessitam de um ato administrativo ou jurisdicional
para produzir os seus efeitos. Para analisar a questão da circunscrição desta
declaração de ilegalidade ao caso concreto cumpre analisar o artigo 73º nº2 do
CPTA, sendo que no acórdão em estudo esta questão se verifica essencial para a
verificação da eventual falta (ou não) de jurisdição do Supremo Tribunal
Administrativo para julgar o processo. Este artigo refere que quando os efeitos
de uma norma se produzam imediatamente, sem dependência de um ato
administrativo ou jurisdicional de aplicação, o lesado poderá obter a sua
desaplicação pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos
ao caso concreto.
Quanto a este artigo a
opinião tem vindo a pronunciar-se e a divergir. É referido no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Outubro
de 2018 (proc. 2/15.2BCPRT) que “A primeira norma (artigo 73.º, n.º 2, do
CPTA) é inconstitucional quando interpretada no sentido de que atribui
competência aos Tribunais Administrativos para, a título principal e
definitivo, declarar a inconstitucionalidade e ilegalidade qualificada de normas
regulamentares, ainda que com efeitos restritos ao caso concreto”.
O pedido de declaração de ilegalidade com efeitos
pessoais verifica-se então como sendo a via processual possível que permitirá
ao autor obter uma tutela jurisdicional efetiva perante a norma imediatamente
operativa em que se está perante que, do ponto de vista do Requerente viola os
seus direitos, liberdade e garantias. Como é referido no Acórdão a procedência
do pedido do Requerente corresponde à possibilidade de qualquer lesado por uma
norma imediatamente operativa, poderá proceder à sua desaplicação judicial
dessa mesma norma com fundamento na respetiva ilegalidade. Ora, formulado
nestes termos, estando o pedido do Requerente circunscrito ao caso concreto, visto
que é pedida a não aplicação da proibição de ajuntamentos de pessoas na via
pública, estaremos perante uma declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral, que está reservada ao Tribunal Constitucional em primeira
instância, por via de ação, nos termos do artigo 281º nº1 e nº2 e artigo 282 da
Constituição da República.
Concluiu-se então que, sendo o pedido formulado
como sendo o da declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais no
âmbito desta ação administrativa de impugnação de normas, pela intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias em que o Requerente pretende que a
si não seja aplicada a norma proibitiva de ajuntamentos de mais de 10 ou 20
pessoas em espaços públicos.
Posto isto, cumpre comentar a alegação do
Requerente de inconstitucionalidade material desta norma proibitiva dos
ajuntamentos de 10 ou mais pessoas. Ora, alega o Requerente que esta norma se
afigura “restritiva de direitos, liberdades e garantias, que não tem forma
nem habilitação legal, pelo que viola o disposto nos artigos 18º nº2 e 165º nº1
b) da Constituição da República Portuguesa, nem tem a densidade normativa
constitucionalmente exigida para este tipo de normas”. Ora esta afirmação não
poderia ser mais contrária à ratio desta norma aquando da sua criação e
tendo em conta o contexto da sua aprovação, concordando plenamente com a
alegação da Presidência do Conselho de Ministros.
A
necessidade da declaração do Estado de Emergência em que nos encontramos
justifica-se pela pandemia que vivemos nos últimos meses e em que os casos de
COVID-19 têm vindo a aumentar exponencialmente. Desta forma, e não só pelo
Estado Português, foram discutidas e aprovadas uma série de normas que
pretendiam ao máximo controlar a evolução dos casos, passando por evitar ao
máximo o aglomerado injustificado de pessoas que pode levar à criação de
cadeias de transmissão. Como referido no Acórdão “o conjunto destas decisões
judiciais vêm densificando o que se pode denominar como parâmetros do Estado de
Direito em estado de emergência administrativa sanitária e o nível e as vias de
proteção de direitos fundamentais durante a respetiva vigência”. De apontar
também o caráter temporário desta medida.
Desta
forma, e em harmonia com a decisão do Supremo Tribunal, a medida de proibição
de ajuntamentos que vem impugnada não carece de inconstitucionalidade.
De
seguida, cabe analisar o segundo ponto do sumário do Acórdão em análise que se
refere ao meio de que se serviu o Requerente – a intimação para a proteção de
direitos, liberdades e garantias.
A
intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias faz parte de um
leque de ações principais urgentes que estão ao dispor na lei portuguesa. As ações
urgentes destinam-se, portanto, a acautelar situações em que a celeridade da
intervenção dos tribunais é essencial e exigida pelo interesse dos particulares
em ver resolvida diligente e definitivamente uma situação, tendo em conta a
verificação de prazos mais curtos, correndo em férias e prioritariamente sobre
os demais ao abrigo do disposto no artigo 36º do CPTA.
Nos
artigos 109º a 111º do CPTA está então presente a intimação para a proteção dos
direitos, liberdades e garantias. Ora, explicita este primeiro artigo que “a
intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida
quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a
adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para
assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por
não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento
provisório de uma providência cautelar”.
Quanto
aos pressupostos processuais da aplicação deste meio de tutela, a professora
Carla Amado Gomes, apresenta-nos a competência do tribunal e o prazo de
apresentação do pedido. Quanto ao primeiro, o artigo 4º nº1 a) do ETAF
remete-nos para o artigo 44º nº1 1ª parte atribuindo a competência aos
tribunais administrativos de círculo. De seguida, e tendo em conta o disposto
no artigo 20º nº5 CPTA, cairá a intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias na competência do tribunal da área onde deva ter lugar o
comportamento ou omissão pretendidos. No que toca ao prazo de apresentação do
pedido, sendo que tendo em conta a configuração específica deste meio de defesa,
não se prevê a sujeição deste a qualquer prazo.
Já
no que se refere aos requisitos de admissibilidade deste meio de tutela, a
Professora elenca três: o objeto, a legitimidade das partes e o respeito pela subsidiariedade
patente no artigo 131º do CPTA.
No
que toca ao objeto, esta pretende tutelar os direitos constantes do Título II
da Parte I da Constituição da República Portuguesa, pretendendo prevenir, com
especial celeridade, “qualquer atentado, por parte dos poderes públicos, ao
exercício útil destes direitos, por ação ou omissão”. Relativamente à
legitimidade numa vertente ativa dependerá da relação entre o Requerente e a posição
subjetiva defendida, ou seja, quem alegar e provar sumariamente a ameaça de
lesão de um direito, liberdade ou garantia através de uma ação ou omissão será
parte legítima. Numa vertente passiva, é-nos indicada no artigo 109º nº1 a
Administração como possível requerido da intimação, assim como particulares
designados no número 2 do mesmo artigo.
Por
fim, a professora refere que o ponto essencial para a admissibilidade passará
pela subsidiariedade relativamente ao decretamento provisório de qualquer
providência cautelar, referindo quanto a isto que “se deve entender que a
intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias em geral só será
admissível se o direito que, em concreto, se encontra ameaçado, não puder ser
tutelado com mais eficácia (leia-se: adequação e plenitude) por outra qualquer
providência especificamente orientada para a sua defesa”.
No
ponto 7.1. Dos pressupostos da intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias, o STA conclui confirmando: a urgência no requerimento, visto
estarmos perante proibições normativas com eficácia imediata com efeitos que se
produzirão diretamente na esfera do Requerente; a “intrínseca irrepetibilidade
de exercício útil do direito”, tendo em conta a vigência temporal das normas em
questão; e, por fim, a tutela do direito não compadecer com uma mera decisão
cautelar, exigindo-se sim uma efetiva decisão de mérito.
A
questão no caso prende-se, no entanto, com a violação de direitos, liberdades e
garantias que a utilização deste meio de tutela cautelar. Pretendendo o Requerente
a declaração de ilegalidade das normas circunstante ao caso concreto, a procedência
da intimação, que apenas para si teria efeitos, não se coaduna, na prática, com
o resultado que o Requerente pretende obter, tendo em conta que a violação do
direito à reunião que o Requerente alega trata-se de um direito fundamental de
exercício coletivo. Mais uma vez se refere a necessidade e excecionalidade
desta medida perante a pandemia que perdura.
Por
fim, no que toca ao amparo constitucional, refere o artigo 20º nº5 da
Constituição da República Portuguesa que “para defesa dos direitos,
liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela
efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Não obstante,
e em concordância com o referido no segundo ponto do sumário em análise, há que
ser feita um reconhecimento especial dos pressupostos processuais de aplicação
da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, sob pena de haver
uma grande “corrida” ao recurso desta figura que inundará os tribunais e
acabará por produzir os efeitos que lhe são assim subjacentes.
Maria Teresa Ribeiro
Nº 56681
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