Comentário ao acórdão Supremo Tribunal Administrativo de 10-09-2020
Comentário ao
acórdão Supremo Tribunal Administrativo de 10-09-2020
A, intentou no Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo
24.º, n.º 1, al. iii), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(«ETAF»), e dos artigos 109.º e ss. do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos («CPTA»), intimação para a proteção de direitos, liberdades e
garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros, pedindo:
“i) a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos
circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas da
conjugação dos pontos 1, 2 e 8 da Resolução do Conselho de Ministros n.º
55-A/2020 e ainda a que se encontra no art. 15.º do Anexo àquela Resolução.”
A Presidência do Conselho de Ministros, citada,
veio apresentar a sua defesa por exceção, alegando falta de
jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, ilegitimidade passiva da
Presidência do Conselho de Ministros, impropriedade do meio
processual e incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo
para decidir do segundo pedido; e, por impugnação, sustentando a conformidade
constitucional das normas impugnadas.
1.
Analise dos
pressupostos processuais
1.1. Da falta ou não de
jurisdição deste Supremo Tribunal Administrativo para julgar o processo.
Alega a
Requerida, no essencial, que o pedido formulado pelo Requerente de declaração
de ilegalidade por inconstitucionalidade da norma com efeitos pessoais
(circunscritos ao Requerente), ou seja, com efeitos limitados ao caso concreto,
não pode ser conhecido pelo Supremo Tribunal Administrativo, pois a norma do
n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, em que o mesmo se fundamenta, não admite um tal
pedido, conclusão que se alcança, seja a partir da interpretação da norma em
conformidade com a CRP, seja por desaplicação desta norma com o fundamento de a
mesma violar a reserva de jurisdição constitucional.
1.2. Da ilegitimidade passiva da Presidência do
Conselho de Ministros.
Alega
a Requerida que é o Conselho de Ministros e não a Presidência do Conselho de
Ministros o autor da resolução cuja ilegalidade (inconstitucionalidade) é
suscitada no processo, pelo que não integrando o mesmo órgão-, Governo (artigo
1.º do Regime da Organização e Funcionamento do XXII Governo Constitucional),
deveria a requerida ser absolvida da instancia a titulo de exceção dilatória
que obsta ao conhecimento da causa (89º nº1, nº2 e 4ºe CPTA)). Contudo, hoje é pacifica na doutrina e
jurisprudência nacionais a legitimidade da Presidencial do Conselho de
Ministros para atuar nas ações intentadas por atos do Conselho de Ministros, em
função da sua íntima relação intersubjetiva institucional -, posição à qual se adere.
1.3. Da impropriedade do meio processual
Alega
a requerida a impropriedade do meio processual em função da natureza da
intimação que apenas pode ter como “resultado” uma sentença condenatória e não
pode ser utilizada como “meio impugnatório”. O tribunal discorda da alegação
tendo por base a efetiva natureza da intimação (109º CPTA), que enquanto meio processual
garante a tutela em tempo útil da pretensão do autor quando por via da tutela
cautelar não seja possível assegurar uma decisão que tenha efetivo efeito útil.
In casu, adere-se à posição do tribunal na medida em que do ponto de
vista processual a intimação é um meio processual urgente que concretiza o
disposto no artigo 20º nº5 CRP, tendo uma geometria claramente variável.
1.4. Da incompetência hierárquica do Supremo Tribunal
Administrativo
A
Presidência do Conselho de Ministros vem excecionar a incompetência do Supremo
Tribunal Administrativo para conhecer do segundo pedido, em função da
necessidade de formulação do pedido de condenação a uma conduta, contra a
entidade administrativa competente, in casu, o Ministro responsável pela
tutela das forças policiais, para qual seria competente do Tribunal de Círculo
e não do Supremo Tribunal Administrativo. Adere-se desde logo à posição do
tribunal em função da tipificação legal do mecanismo de competência quando haja
pedidos cumulados-, pelo artigo 21º CPTA-, sendo os pedidos cumulados, é
competente o tribunal superior para a apreciação dos demais.
1.5. Da verificação dos pressupostos da intimação para
proteção de direitos liberdades e garantias
Na
situação em análise verifica-se que há urgência fundada na sujeição potencial a
normas proibitivas com eficácia imediata na esfera do requerente, suscetíveis
de produzir uma lesão na sua esfera. Abona ainda o facto de as normas em
questão terem uma vigência temporal limitada, de modo que não seria compatível pelos
meios de tutela cautelares. Verifica-se assim o preenchimento dos pressupostos
processuais do artigo 109º CPTA-, no mesmo sentido o tribunal.
2.
Análise
do sumário do acórdão nos dois pontos iniciais
“A
apreciação dos pressupostos processuais no âmbito da intimação para a proteção
de direitos, liberdades e garantias tem de atentar nas especiais
características deste meio processual enquanto instrumento, entre nós, de
obtenção de amparo constitucional;”
Quanto à
legitimidade passiva, o artigo 109º indica como possíveis requeridos da
intimação, quer a Administração (em sentido orgânico), no nº 1, quer outras
entidades que exerçam funções materialmente administrativas, designadamente
concessionários (e não só). Em casos de contornos simples, a legitimidade
passiva restringir-se-á aos requeridos diretos; contudo, em situações de maior
complexidade, em que a ponderação de interesses possa não ser unívoca, pode
haver lugar à identificação e citação de pessoas a quem a procedência do pedido
de intimação cause dano eventualmente em posições jurídicas de natureza similar
à defendida pelo requerente.
A citação e
audição dos contrainteressados far-se-á, dessa feita, de acordo com o artigo
83º do CPTA aliás, toda a tramitação, nesses casos, se rege, não pelo artigo
110º mas antes pelos artigos 78º e seguintes do CPTA, com os prazos reduzidos
para metade, nos termos do artigo 110º/3 do CPTA.6 No presente
acórdão é feita menção à simplificação com que devem ser analisados os
pressupostos processuais relativamente à intimação, considerando que se impõem
uma interpretação do pedido neste sentido. Veja-se que se constitui com a
fundamentação em causa o risco inerente à simplificação, sem rigor na
apreciação das “adjetividades típicas essenciais”, em função da adequação e
gestão processual que tem especial manifestação neste meio de tutela urgente.
“A declaração de ilegalidade de normas imediatamente
operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto pode ter como
fundamento a violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se
esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no
âmbito de um processo urgente de intimação para a proteção de direitos,
liberdades e garantias;”
O
pedido de declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto,
com fundamento em inconstitucionalidade é um mecanismo de controlo aplicado a
normas regulamentares imediatamente operativas - normas que não dependem de um
ato administrativo ou jurisdicional para produzirem os seus efeitos (art.73º/2
CPTA).
O
conceito de “legalidade” é utilizado lato sensu, abarcando como enuncia
o excerto acima, tanto a inconstitucionalidade enquanto violação de regras e
princípios de natureza constitucional (280º e 281º CRP).
A
doutrina tem discutido de forma acesa a eventual inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 72º nº2 CPTA, em função da possibilidade conferida ao juiz
administrativo de declarar a ilegalidade com efeitos restritos ao caso concreto,
colocando-se a questão de saber se a reserva de jurisdição do Tribunal
Constitucional abrange não só a declaração de ilegalidade com força obrigatória
geral como a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso
concreto.
No sentido da
inconstitucionalidade do 73.º, n.º 2, do CPTA, por violação do disposto no artigo 221.º
da Constituição F. ALVES CORREIA1. O primeiro argumento é o da
violação da reserva de jurisdição constitucional: é ao Tribunal Constitucional
que cabe a última palavra em matéria de constitucionalidade de normas. O
segundo argumento é o da impossibilidade de interpretação do artigo 73.º, n.º
2, do CPTA em conformidade com a Constituição por contrariar a letra e a
vontade do legislador.
No sentido da
inconstitucionalidade interpretativa do artigo 73.º, n.º 2, do CPTA, salva por
interpretação em conformidade com o disposto no artigo 281.º da Constituição,
podem encontrar-se L. LOPES MARTINS e J. ALVES CORREIA2.
No sentido da
não inconstitucionalidade do disposto no artigo 73.º, n.º 2, do CPTA, por
interpretação conjugada com o disposto nos artigos 280.º, n.º 1, a), 280.º, n.º
1, 2 a), b), c), da Constituição e artigo 70.º, n.º 1 a), c), d) e e), da Lei
do Tribunal Constitucional, posição a que se adere plenamente, encontram-se M.
AROSO DE ALMEIDA3 e J. C. VIEIRA DE ANDRADE4. A
desaplicação de norma num caso, a requerimento de interessado, não produz
efeitos de força obrigatória geral: envolve formulação de juízo de
inconstitucionalidade, tal como sucede no âmbito da fiscalização incidental em
sede de impugnação de ato de aplicação.
Face ao exposto, verifica-se
novamente que a declaração do tribunal é suscetível de incorrer em fragilidades
em função da falta de consenso doutrinário quanto à constitucionalidade da
norma em questão. Veja-se desde logo que a suscetibilidade de haver através do
mecanismo legal estabelecido no artigo 73º nº2 CPTA, normas com efeitos
imediatamente operativas inconstitucionais a vigorar parcialmente na medida em
que os sujeitos que estejam abrangidos pelo caso julgado favorável, conseguiram
através da sua pretensão a desaplicação da norma no caso concreto e consequente
revogação substitutiva, diferentemente de todos os cidadãos que há partida
estão sujeitos a lesões dos seus direitos e garantias constitucionais.
In casu, não obstante toda a questão material, importa deixar
presente que uma eventual procedência da intimação em causa colocaria os
cidadãos abrangidos pelo caso julgado numa situação diferencial face a todos os
outros destinatários da norma imediatamente operativa em questão. Importa ainda
referir ainda que um dos efeitos que tem sido apontado pela doutrina nacional
como problemáticos, consubstancia-se com a incoerência da norma do 73º nº2 CPTA,
à luz da simplificação e agilização processuais na medida em que esta norma é
suscetível de desencadear uma serie de recursos de constitucionalidade para o
Tribunal Constitucional.
Nestes termos, segue-se a
posição da inconstitucionalidade da norma em questão, acima defendida e
partilhada também pelo professor VASCO PEREIRA DA SILVA5, na medida em
que se apresenta como potencialmente violadora do princípio da igualdade e do
Estado de Direito democrático (13º e 2º CRP), abandonado os outros
destinatários da norma-, que nas palavras do autor acima citado-, tem direito
de resistência quando haja inconstitucionalidade nos termos acima descritos.
3.
Bibliografia
1 Cfr. F.
ALVES CORREIA, Justiça Constitucional, Coimbra, Almedina;
2L. LOPES
MARTINS / J. ALVES CORREIA, O novo regime do CPTA em matéria de impugnação de
normas: como transpor a inconstitucionalidade do art. 73.º, n.º 2?, Cadernos de
Justiça Administrativa, Braga, n.º 114 [Nov.-Dez.2015]:
3M. AROSO DE
ALMEIDA / C. FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código do Processo nos Tribunais
Administrativos, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 527 ss.; J. C
4J. C. VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 17.ª ed., 2019, Coimbra,
Almedina, pp. 208 ss. Veja-se, também, o Ac. TCA_N, de 2/2/2016, P. 1/15;
5SILVA, Vasco Pereira da, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Ações no
Novo Processo Administrativo, Reimpressão
da 2ª Edição, Almedina,
2009;
6Carla Amado
GOMES, «A Suspensão da Eficácia de Regulamentos Imediatamente Exequíveis –
Breves Reflexões», in: Textos Dispersos de Direito do Contencioso
Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2009, pp. 216 e seguintes).
Gonçalo José Martins Vera
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