Convolação de processo de intimação em processo cautelar
O confronto com a Administração Pública, por meio de actuações inevitáveis e realizadas no âmbito dos seus poderes públicos, por vezes suscita situações onde se afigura como necessário uma tutela, uma defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. É neste plano que entra a lei portuguesa, em concreto, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), através da previsão de, para além de providências cautelares, um outro conjunto complexo de acções principais ― umas urgentes, outras não-urgentes. As acções urgentes tratam de acautelar situações em que se impõe, por via do interesse dos particulares ou até mesmo da Administração, a celeridade da intervenção dos tribunais em ver resolvida rápida e definitivamente determinada situação litigiosa. Por este facto, essas ações principais urgentes obedecem a prazos mais curtos do que o normal, com a particularidade de correrem em férias e terem prioridade sobre os demais (conforme artigo 36.º do CPTA).
É aqui
que entra a figura de intimação para proteção de direitos, liberdades e
garantias, uma acção principal urgente prevista e regulada nos artigos 109.º a
111.º do CPTA. Por recurso a este meio processual podem ser obtidas decisões
que imponham à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa, isto
é, de facere ou non facere, que se revele idónea para assegurar o exercício, em
tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia. Para tal, cumpre referir que
teremos de fazer um exercício de aptidão, na medida em que, primeiramente,
teremos de descartar a possibilidade do recurso à tutela cautelar, por não se
revelar possível ou adequado.
A
propositura de um processo de intimação não obedece a qualquer prazo, com a
particularidade de, assim que propostas, a sua tramitação é, à partida,
ultra-simplificada. De uma forma (aparentemente) algo polémica, pode acontecer
que em situações de especial urgência, o juiz possa mesmo dispensar a
apresentação de uma contestação escrita por parte do requerido, promovendo, por
seu lado, a sua audição através de qualquer meio ou a realização de uma
audiência oral, no termo da qual a decisão é tomada de imediato. Isto espelha
bem a celeridade que caracteriza estes processos, pelo seu carácter de
urgência.
Neste
campo, entram os professores Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, segundo
os quais o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e
garantias, “dirige-se à emissão de uma sentença de condenação mediante a qual o
tribunal impõe a adoção de uma conduta, que tanto pode consistir, como vimos,
num facere, como num non facere, numa conduta positiva (uma ação), como numa
conduta negativa (uma abstenção).
O
recurso a este processo urgente pressupõe que, num primeiro momento, esteja em
causa uma situação jurídica relativa a um direito, liberdade e garantia
previsto e suficientemente densificado na Constituição ou na lei, sendo que
depois, num segundo momento, deverá então existir na situação concreta uma
ameaça ao direito, liberdade ou garantia apenas passível de ser evitada,
mediante recurso ao referido processo urgente de intimação. Aqui, dizem os
mesmos professores que “não releva, por isso, a mera invocação genérica de um
direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de
ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao
menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a
intimar a Administração através de um processo célere e expedito, a adotar uma
conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil
desse direito”.
Posto
isto, podemos com alguma certeza afirmar que só é legítimo recorrer a um
processo de intimação quando esteja em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de
um direito, liberdade ou garantia (ou de um direito fundamental de natureza
análoga) cuja proteção seja urgente. Para estes casos em que não se verifique
este carácter de urgência, a via normal de
reacção é a propositura de uma ação não urgente, associada à dedução do pedido de
decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença
que vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Apenas e só quando se
verifique que a utilização destas vias não urgentes de tutela não se revela
possível ou bastante para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito,
liberdade ou garantia é que devemos considerar o processo de intimação.
Não obstante, pode
ocorrer que, efectivamente, se verifique a propositura de um processo de
intimação de protecção de um direito, liberdade ou garantia cuja protecção não
se revele, realmente, urgente. E para estas situações é que existe Direito,
para estas situações existe a lei, que por vias da sua interpretação e aplicação,
solucionará os problemas que destes confrontos advenham.
Neste sentido, fazendo
agora uma referência a jurisprudência, gostava de chamar à colação conteúdo de
um Acórdão exemplarmente adequado a estas situações de improcedência do meio
processual, do processo de intimação. É pois o Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul, com o n.º de processo 1753/16.0BELSB. Neste litígio, vem o Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras (que teima em aparecer publicamente nem sempre
pelas melhores razões) interpor recurso jurisdicional da sentença que, no
âmbito do Processo de Intimação para Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias
em causa, contra si foi proposto por um nacional do Paquistão. O mesmo foi
julgado procedente e foi então intimada a entidade requerida a proceder à
prática da decisão de autorização de residência e consequente emissão do título
de residência no prazo de 15 dias, sob pena de aplicação de sanção compulsória.
No recurso, veio então o recorrente alegar (concluir) que os processos urgentes
devem ser reservados para as situações de verdadeira urgência na obtenção de
uma decisão sobre o mérito da causa, ou que o recorrido não é titular de
qualquer direito, liberdade ou garantia posto em crise por um acto
administrativo, entre outras. Este é um exemplo prático dos requisitos que
expusemos serem necessários para a propositura de um processo de intimação,
nomeadamente o carácter de urgência e a real violação do direito, liberdade ou
garantia que se visa proteger. Acabou então a sentença por ditar que, nestes
termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso
Administrativo deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando-se a
sentença recorrida, e ordenando a baixa dos autos ao Tribunal a quo a fim de
ser proferido despacho nos termos e para efeitos do disposto no artigo 110º-A
nº 1 do CPTA.
Isto vai resultar na
convolação do processo de intimação em providência cautelar, na medida em que,
de acordo com o disposto no referido artigo 110.º-A n.º 1 do CPTA, a não
verificação de situação de especial urgência subjacente à necessidade da
intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias não determina a
imediata absolvição da instância, impondo-se, ao invés, ao tribunal que convide
o autor a substituir o pedido, para o efeito de requerer a adoção de
providência cautelar. Este 110.º-A n.º1 do CPTA é um novo artigo que dita então
a convolação da intimação em providência cautelar que, a meu ver, espelha um
aproveitamento processual, protector dos direitos da parte que visa obter uma
protecção do seu direito, liberdade ou garantia posto em causa pela situação
concreta.
Manuel Amorim Ferreira
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