Estatuto dos Contra-Interessados à luz do Acórdão do TCA Norte

 Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (Processo 01332/04.4BEPRT)Apreciação à luz do regime legal do artigo 57º do CPTA


Contextualização

O acórdão em análise trata a interposição de recurso jurisdicional à sentença do Tribunal Administrativo Central do Porto no âmbito de uma ação de anulação do despacho homologatório da lista classificativa que indicava os candidatos selecionados para o preenchimento de uma vaga única para um estágio da carreira técnica superior no quadro da faculdade de Letras da Universidade do Porto. 

Ora, em sede do TAC Norte e, em resposta ao convite de aperfeiçoamento emitido pela Mª Juíza a quo, a recorrente vem a identificar os contra-interessados na ação de impugação por si proposta, indicando, somente os indivíduos que se encontram numa posição de classificação superior àquela que lhe foi atribuída (i.e., o 3º lugar). Frente a esta opção da recorrente, o TAC Norte  julgou a ação improcedente com fundamento na ilegitimidade passiva que feria o processo, considerando, deste modo, que não teriam sido indicados todos aqueles que se revestiam na qualidade de contra-interessados no processo cuja apreciação lhe foi submetida. A decisão a quo absolveu a recorrente da instância com fundamento na ilegitimidade passiva dos demandados. Na decorrência desta decisão, ficou inquinada a procedência da ação que aquela intentada pela recorrente.



Análise

Dito isto, importa discorrer brevemente acerca da noção de contra-interessados ínsita no artigo 57º do CPTA. O referido preceito legal faz corresponder à noção em análise aqueles “a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”. Os indíviduos ora implicados devem ser obrigatoriamente demandados a par da autora do ato impugnado. Nesta sede importa destacar as considerações do Sr. Professor Vasco Pereira da Silva que indica que o termo “contra-interessados” é infeliz, marcado pelos “traumas da infância difícil” do Direito Administrativo. No entanto, admite a sua conformidade com o novo paradigma das relações administrativas multilaterais no Direito Administrativo Substantivo que, por sua vez, implica a revalorização da posição dos “impropriamente chamados terceiros” no Contencioso Administrativo enquanto sujeitos principais dotados de legitimidade ativa e passiva. 

Deste modo, importa reconhecer que o regime legal da figura dos contra-interessados parece ilustrar um caso relativamente linear de litisconsórcio necessário passivo, indo de encontro ao imperativo de tutela jurisdicional do artigo 20º em conjugação com o 268º/4 da CRP e densificando as partes legítimas indicadas pelo artigo 10º/1 do CPTA (quanto aos “titulares de interesses contrapostos ao autor”).

Não obstante a aparente simplicidade do preceito, cumpre destacar que sobre ele existe alguma discórdia. Ora, muito embora parte da doutrina se atenha à letra da lei, limitando-se a considerar que os referidos “contra-interessados” são apenas aqueles que poderão ser alvo de potenciais prejuízos mediante a procedência da ação, alguns autores perfilham considerações distintas. Referimo-nos, designadamente, ao entendimento dos professores Mário Aroso de Almeida e Paulo Otero. Ora, embora com justificações algo variantes, ambos os autores entendem que a qualidade de contra-interessado não deve depender apenas da oponibilidade de potenciais prejuízos, mas também eventuais afetações da esfera jurídica dos sujeitos em questão, sejam elas benéficas ou o contrário. Neste sentido, afirmam que “o universo dos contrainteressados é mais amplo, estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respetiva situação jurídica definida pelo ato administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a subsistência ou a introdução na ordem jurídica que lhes diz respeito. Trata-se, pois, de assegurar que o processo não corra à revelia das pessoas em cuja esfera jurídica a ele se propõe a introduzir efeitos. Ora, daqui não decorre necessariamente a titularidade de um interesse contraposto ao do autor da ação.” Deste modo e, em conssonância com as considerações tecidas pelos autores referidos, os contra-interessados assumem a posição de verdadeiras partes detentoras de legitimidade passiva conferida nos termos 10º/1do CPTA, pelo que possuem todos os poderes processuais relativos às partes, entre os quais, a possibilidade de interposição de recurso e de apresentação de contestação (respetivamente nos termos do artigo 155º e 82º do CPTA.).


Assim sendo e, frente às considerações supra-mencionadas, ao que parece, o tribunal a quo adotou a posição propugnada pelos Professores Mário Aroso de Almeida e Paulo Otero, na medida em que considerou insuficiente e incompleta a menção dos dois concorrentes classificados em posição superior à recorrente, muito embora sejam estes aqueles que os únicos que, em princípio, poderiam ser alvo de potenciais prejuízos causados pela procedência da ação. Densificando: a impugnação do despacho homologatório da lista classificativa implicará uma reapreciação administrativa subsequente, possibilitando, por esta via, o atingimento da posição obtida pelos primeiros dois classificados, bem como dos restantes concorrentes. No entanto, a afetação da posição dos concorrentes colocados abaixo da recorrente será sobretudo benéfica, dado que se cria a possibilidade de ascenderem aos primeiros lugares de classificação. Diferentemente, no caso dos primeiros dois colocados acima da recorrente, tendo em conta que a sua posição na classificação será alvo de reapreciação, estes sofrerão, deste modo, a perda dos benefícios decorrentes da posição que lograram atingir. Aliás, ainda que, aquando da reapreciação, se conclua que, efetivamente, os primeiros dois lugares foram devidamente atribuídos, a posição obtida pelos dois primeiros classificados é-lhes retirada, ainda que temporariamente, o que acarreta de forma evidente consequências prejudiciais. 

Dito isto, parece-nos evidente que, em sede do caso em apreço, apenas os dois primeiros classificados se inserem na noção de contra-interessado ínsita no artigo 57º, interpretado segundo o seu elemento literal. Por este motivo, conclui-se que a decisão do tribunal recorrido apenas poderá ter por fundamento a noção ampla de contra-interessado.


Posição Adotada

Por fim, cumpre tomar posição acerca das questões suscitadas pelo acórdão em análise, bem como pelo regime legal dos contra-interessados. Assim sendo, consideramos que a posição adotada pelos Professores Mário Aroso de Almeida e Paulo Otero provocam o esgotamento da utilidade da própria noção de contra-interessados: na verdade, aderir à referida posição importaria quase que a atribuição aos “impróprios terceiros” de um posição idêntica à das partes principais na ação, pelo que não haveria utilidade prática na distinção entre as partes principais e os contra-interessados na ação.

Deste modo e, em conformidade com a posição adotada pelo tribunal a que se recorreu, concluímos que o artigo 57º e 10º/1 devem ser interpretados à luz do seu elemento literal. Assim sendo, concordamos com a posição adotada pelo tribunal ad quem que, por sua vez, julgou o recurso em questão procedente por considerar que, no caso em análise, seriam contra-interessados, apenas os dois primeiros classificados. 





Bibliografia 

Aroso de Almeida, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 2ª edição, Almedina, (2016).

Otero, Paulo, “Os Contra-Interessados em Contencioso Administrativo: Fundamento, Função e Determinação do Universo em Recurso Contencioso de Ato Final de Procedimento Concursal, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares”, Coimbra, (2001).

Teixeira de Sousa, Miguel, “Apreciação de Alguns Aspetos da Revisão do Processo Civil – Projeto, Revista Ordem dos Advogados”, (1995).

Vieira de Andrade, José, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 14ª edição, Almedina, (2015)



Gabriela Neves de Souza

Nº 58515, Subturma 3 

Turma A

 

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