Legitimidade Processual

 Legitimidade Processual

À semelhança do que ocorre no processo civil, também o Contencioso Administrativo fixou pressupostos para que as partes possam agir/intervir como partes em juízo e para que se possa reconhecer que é entre elas que a questão controvertida num determinado processo deve ser debatida em juízo.  Para alguém se poder considerar como parte num processo administrativo, tem de preencher os seguintes pressupostos: (i) ser pessoa ou entidade que, em si mesma, se apresenta dotada de personalidade e de capacidade judiciária; (ii) apresentando-se em posição de poder figurar como parte na concreta ação em presença, por estabelecer, alegadamente, com o objeto dessa ação uma conexão que satisfaça os requisitos legalmente exigidos para ser reconhecida como parte legitima. 

Deve-se começar por separar a legitimidade ativa, que implica a titularidade do direito (potestativo) de ação, da legitimidade passiva, relativa à entidade contra quem se formula o pedido ou que seja prejudicada pela sua procedência, emboras as legitimidades tenham, entre si, uma relação típica de correspondência. 

A legitimidade processual é assumida pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) como um dos pressupostos processuais (e não como uma condição de procedência da ação, cuja titularidade se afere, portanto, por referência às alegações produzidas pelo autor). Esta consiste na suscetibilidade de ser parte num determinado processo jurisdicional, podendo falar-se em legitimidade processual ativa, quando respeitante ao autor, e em legitimidade processual passiva, quando respeitante ao réu. Assim, a legitimidade processual não se reporta, em abstrato, à pessoa do autor (ou demandado) mas afere-se em função da concreta relação que se estabelece, alegadamente, entre as partes e uma concreta ação, com um objeto determinado.

O professor Vasco Pereira da Silva refere que a legitimidade se afere em relação ao Direito – titularidade de posições jurídicas substantivas. Há um reconhecimento de que a legitimidade “serve” para fazer a ponte entre a justiça administrativa e o direito material.

Autor será aquele que tem interesse em demandar, intentando o processo em tribunal, fazendo valer o seu direito de ação, e réu será aquele que tem interesse em contradizer, inviabilizando a pretensão do autor. 

O CPTA, regula separadamente as questões da legitimidade ativa e da legitimidade passiva. Assim, a legitimidade ativa encontra-se legalmente prevista no artigo 9º do CPTA – quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta o apresente como em condições de nela figurar como autor; E, a legitimidade passiva encontra-se legalmente prevista no artigo 10º do CPTA – quem deve ser demandado na ação com o objeto configurado pelo autor.

O artigo 9º do CPTA apresenta-se como um critério geral de legitimidade ativa. Este está construído segundo uma base subjetivista, ou seja, tem legitimidade para ser parte num processo, quem alegue ser parte na relação material controvertida, i.e., quem possa estar a ser afetado na sua esfera jurídica. A vertente subjetivista considera que o Contencioso Administrativo existe para tutelar direitos individuais/posições jurídicas dos cidadãos, contrapondo-se por isso, à vertente objetivista que considera, ao invés, que o contencioso administrativo tem como função tutelar a legalidade e a prossecução do interesse público. 

Segundo a opinião subjetivista só pode recorrer a tribunal, pois só assim tem legitimidade, quem se sinta afetado; sendo que a vertente objetivista tem uma visão mais alargada da legitimidade pois considera que tem legitimidade qualquer pessoa que tenha conhecimento de um ato ilegal.

O artigo 9º, nº1 do CPTA tem um critério comum de aplicabilidade residual, circunscrita aos tipos de litígios cuja estrutura se aproxima do modelo do Processo Civil. Segundo este artigo, o interesse que quer o autor quer o réu têm de alegar afere-se em função da relação material controvertida, isto é, do litígio que é apresentado em juízo. Ou seja, a legitimidade para discutir qualquer relação jurídica controvertida em juízo, corresponde a quem alegue ser parte nessa relação jurídica (artigo 30º e 31º do Código de Processo Civil). Segundo o professor Vasco Pereira da Silva, sempre que alguém alegue ser parte na relação controvertida é o mesmo que dizer que esse alguém alega ser titular de direitos subjetivos ou de posições substantivas de vantagem no âmbito da relação jurídica administrativa.

De qualquer forma, prevê ainda o CPTA, no n.º 2 do artigo 9.º, que independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como associações e fundações defensoras de certos interesses, bem como as autarquias locais e o Ministério Público, têm legitimidade processual quando esteja em causa a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos (por exemplo saúde pública, urbanismo ou ambiente). Temos, aqui presente, um fenómeno de extensão da legitimidade, ou seja, para os casos aqui previsto entende-se a legitimidade processual a quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal.

Este preceito tem em vista o exercício do Direito de Ação Popular (Lei 83/95). Esta remissão significa que os poderes de propositura e intervenção processual previstos na Lei 83/95 serão exercidos nos casos e observando, além das regras gerais, as regras especificas. Tem duplo alcance:

I.               Conferir legitimidade ativa para defesa de interesses difusos (desde que estejam preenchidos os requisitos do art 3º da Lei 83/95)

II.             Permitir a adaptação do modelo de tramitação processual normal (art 13º e ss Lei 83/95).

O CPTA prevê uma série de disposições que consagram regras especiais de legitimidade processual ativa:

Legitimidade Ativa nas Ações de impugnação de atos administrativos

Sendo o art 9º do CPTA, um critério geral, o Código apresenta critérios especiais para a ação administrativa especial da impugnação de atos administrativos. Assim sendo, o artigo 55º CPTA refere quem tem legitimidade ativa, ou seja, legitimidade para agir na impugnação de atos administrativos. O nº1, alínea a) do mesmo preceito (alegação de interesse direto e pessoal) refere que tem legitimidade, citando, “Quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente, por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (...)”. A legitimidade individual, contudo, para impugnar atos administrativos não tem de se basear na ofensa de um direito ou de um interesse legalmente protegido. Basta que o ato esteja a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de forma a que a anulação ou a nulidade do ato lhe traz uma vantagem direta, seja ela jurídica ou económica. 

Hoje em dia, o interesse é qualificado como “direto e pessoal”, mas nem sempre foi assim. Acrescia, anteriormente, o requisito de este ter também de ser legitimo. 

Interesse pessoal – tem de ser uma utilidade que reivindique para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legitima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move no processo;

Interesse direto – questão de saber se o interesse é atual e efetivo, estando numa situação de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório.

Para José Duarte Coimbra, ter interesse na impugnação de um ato administrativo significaria que a impugnação desse ato teria de satisfazer uma necessidade do autor; ou, se ainda não fosse, que essa impugnação seria boa para o autor ou este teria razões para querer essa impugnação. Este autor considera que o interesse de que aqui se trata é um interesse em que releva “as relações jurídicas para querer impugnar o ato”. Ou seja, ter interesse, e consequentemente legitimidade para impugnação do ato é ter uma base jurídica que possibilite o acesso ao juiz.

Para Mário Aroso de Almeida, o caráter pessoal prende-se com o facto de ter de se exigir ao interessado em agir uma utilidade pessoal. Por sua vez, este entende que o caráter direto consiste em saber se existe um interesse atual e efetivo em pedir a impugnação do ato.

Para o interesse processual estar preenchido, exige-se que haja um interesse real e atual. Trata-se, portanto, de saber se há uma necessidade efetiva de tutela judiciária. No artigo 39º CPTA encontramos uma presença explicita do interesse processual, enquanto que no artigo 55º/1/a) (mencionado supra), verifica-se apenas, implicitamente, uma presença deste pressuposto. A falta de verificação deste pressuposto por parte do autor, numa ação de simples apreciação, obsta à apreciação do mérito da causa que, por sua vez, conduz à absolvição do réu da instância.

 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ac. De 20/6/2012, P. 0230/12 - Neste processo estávamos perante uma ação administrativa especial, logo a lei não exige a titularidade da relação material controvertida apenas que o autor seja titular de um “interesse direto e pessoal”. Neste processo para se averiguar a legitimidade do autor é necessário que este retire uma utilidade ou vantagem da pretensão de anulação do ato lesivo. Este acórdão considerou que, se por um lado esta legitimidade é alargada a quem não seja titular da relação jurídica controvertida, por outro lado podem ser prejudicados pela própria legitimidade se da ação não retirarem nenhuma vantagem ou utilidade. Estando neste caso perante um caso de compropriedade e sendo que é assente que o exercício de direito decorrentes da compropriedade tem de ser feito em conjunto por todos os comproprietários, o STA entendeu que o pedido de anulação do ato e o pedido de condenação ao pagamento de uma indemnização tem de ser feito por todos os comproprietários em conjunto. Só assim, através da atuação conjunta é que se poderá retirar benefícios do êxito da ação. Assim sendo, numa situação de compropriedade para impugnação de ato administrativo em que os benefícios do êxito da ação só se irão verificar no conjunto é necessário que os comproprietários atuem em conjunto pois só assim terão legitimidade.

 

O CPTA prevê muitas mais disposições que consagram regras especiais de legitimidade processual ativa, como: (i) as de condenação à prática de ato administrativo – o artigo 68º tem as cinco categorias de pessoas e entidades legitimadas a pedir a condenação da Administração à prática de atos administrativos ilegalmente recusados ou omitidos. Importa referir o artigo 68º/1/a) onde a dedução do pedido de condenação só está ao acesso de quem alegue um direito ou, pelo menos, um interesse legalmente protegido à emissão de ato ilegalmente recusado ou omitido; (ii) de impugnação de normas – artigo 73º/1 (legitimidade para impugnar Normas Regulamentares) onde se identifica as categorias de pessoas e entidades legitimadas a pedir a declaração da ilegalidade de normas emanadas no exercício da função administrativa (artigo 72º) – e, de condenação à emissão de normas – artigo 77º (Legitimidade para pedir a Condenação à Emissão de Normas Regulamentares) onde se identifica as categorias de pessoas e entidades legitimadas a pedir a condenação à emissão de normas regulamentares necessárias para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação; (iii) ou relativas à validade e execução de contratos – o art 77º-A tem um conjunto de disposições que afastam o regime do artigo 9º, no que toca à legitimidade para a propositura de alguns tipos de ações relativas a contratos, prevendo, nesse domínio, um conjunto de situações de extensão da legitimidade processual a quem não alegue ser parte na relação contratual em causa; (iv) ou ainda nos processos declarativos urgentes – artigo 97º e ss. 

 

A legitimidade passiva caberá, como já mencionei anteriormente, em princípio, à parte que seja titular do dever na relação material controvertida, em regra, uma pessoa coletiva pública, e também aos terceiros contra-interessados, enquanto prejudicados diretos com a procedência do pedido. Os pedidos também podem ser dirigidos, em primeira linha, contra-sujeitos privados, quer quando estes, pela atividade que desenvolvem, sejam equiparados a entidades públicas, quer quando estejam em causa pretensões contra eles de outros privados, perante a inércia administrativa ou mesmo de pessoas coletivas públicas que não possam ou não queiram utilizar os seus poderes de autoridade.

No Direito processual administrativo, atendendo às particularidades da organização administrativa, as regras sobre legitimidade processual passiva são mais complexas, consagrando o CPTA como regra geral que a parte demandada é a pessoa coletiva de direito público, como mencionado supra, salvo nos processos contra o Estado ou Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou secretarias regionais. Nesse caso a parte demandada será o Ministério ou Secretaria Regional a cujos órgãos sejam imputáveis os atos praticados ou sobre os quais recaia o dever de praticar os atos pretendidos. 

O artigo 10º/1 CPTA desdobra-se em duas partes:

1ª parte: a legitimidade passiva corresponde à contraparte na relação material controvertida, tal como esta é configurada pelo autor (artigo 30º CPC) – esta tem um critério comum ao artigo 9º/1 tendo uma aplicabilidade residual, circunscrita aos tipos de litígio cuja estrutura se aproxima do modelo de processo civil.

2ª parte: solução de alargamento da legitimidade passiva, pois admite que se prescinda do critério da pré-existência de uma relação jurídica entre as partes na ação, podendo ser demandado se tiver interesses contrapostos ao do autor.

Quanto à legitimidade Passiva das Entidades Públicas (artigos 10º/2; 10º/3; 10º/4; 10º/5; 10º/7), a regra é que a legitimidade passiva corresponda à pessoa coletiva e não a um órgão que dela faça parte. O professor Vasco Pereira da Silva refere que este é um mau princípio, mas, no entanto, esse princípio tem tantas exceções que acabar por deixar de valer como um verdadeiro princípio. Também segundo o Senhor Professor, a Pessoa Coletiva Pública não está em condições de poder continuar a funcionar como único sujeito de imputação de condutas administrativas em razão da complexidade da organização e da natureza multifacetada das modernas relações multilaterais.

Quanto à legitimidade Passiva de Órgãos Públicos cabe-nos olhar para o artigo 10º/8 que tem em vista as situações previstas no artigo 55º/1/d) e, e).

Já quanto à Legitimidade Passiva de Particulares, a contraposição de particulares a concecionários visa tornar evidente que não se tem em vista apenas a situação dos particulares serem concecionários de bens, serviços ou poderes públicos, podendo haver também processos dirigidos a título principal, contra particulares sem esse estatuto de concessionários – artigo 10º/9.

Nas situações de pluralidade das partes (onde o legislador ainda não resolveu, da forma mais adequada, a complexidade do Direito Administrativo), deverá atender-se aos requisitos para a coligação dos autores (artigo 12º CPTA – situação de pluralidade de partes que assenta numa pluralidade de relações jurídicas, havendo vários autores a desencadear um único processo contra um ou vários demandados – coligação ativa – ou um autor desencadeia um único processo conjuntamente com vários demandados, por pedidos diferentes, com fundamentos em diferentes relações jurídicas intercorrentes entre uns e outros – coligação passiva – ou ao carater necessário do litisconsórcio (é de salientar que o artigo 10º/9 tem um alcance que permite admitir o Litisconsórcio Voluntário Passivo. O litisconsórcio é então uma situação de co-titularidade da mesma relação jurídica, como se houve um único autor – litisconsórcio ativo – ou um só demandado – litisconsórcio passivo –, que funcionará então como pressuposto negativo, gerador de ilegitimidade.

Carolina Martinho Martins Dos Santos, nº58494

 

 

           

 

 

 

 

 

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