Ministério Público: a ambivalência de funções e constante evolução

 

1-     O que é o MP- evolução histórica e características

 

O Ministério Público é um órgão de administração da justiça, integrado na função judicial do Estado.

Apresenta-se como uma magistratura paralela e independente da magistratura judicial em que os agentes do Ministério Público são magistrados em termos equiparáveis aos juízes em termos de deveres para com a justiça.

O Ministério Público é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos.

Este é um órgão do poder judicial, participando, com autonomia, na administração da justiça.

 Quanto aos seus órgãos, segundo a Constituição da República Portuguesa e o Estatuto do Ministério Publico, podemos considerar:

— a Procuradoria-Geral da República, que corresponde a um órgão superior, presidido pelo Procurador-Geral da República (artigos 220.º/1/2, CRP; 15.º do EMP);

— as Procuradorias-Gerais Regionais, órgãos que asseguram a representação do Ministério Público no Tribunal da Relação e no Tribunal Central Administrativo, assim como a direção, coordenação e fiscalização da atividade do Ministério Público no âmbito da sua área territorial. São dirigidas por procuradores-gerais-adjuntos, com a designação de Procuradores-gerais regionais (artigos 65.º/67.º do EMP);

— as Procuradorias da República de Comarca, órgãos direção, coordenação, e fiscalização da atividade do Ministério Público compreendidos na área da comarca respetiva e nos departamentos e procuradorias que a integram (artigos 73.º/74.º/75.º do EMP);

— as Procuradorias da República Administrativas e Fiscais, são órgãos de direção, coordenação e fiscalização da atividade do Ministério Público e são coordenadas por um procurador-geral-adjunto, com a designação de Coordenador da Procuradoria da República administrativa e fiscal (artigo 88.º EMP).

 

 

No que concerne à origem do Ministério Público é pacífico na doutrina que tal ocorreu, em Portugal, no séc XIV.

No entanto, em 1832 surgiu um decreto-lei[1] que previa o seu funcionamento junto dos Tribunais Comuns e não dos Tribunais Administrativos, sendo que a sua função não seria a de representação do Estado mas sim a de exposição de opiniões fundamentadas que seriam tidas em conta no final de cada processo.    

O regimento do Ministério Público surgiu com o decreto de 15 de dezembro de 1835, nele se estabelecendo um minucioso catálogo de normas de procedimento em que se inclui o dever de unidade, confirmando-se, no mais, as regras sobre hierarquia publicadas em 1832.

     O Código Administrativo de 1896 previa como funções do MP responder em todos os processos, mesmo que deles não fosse parte, promover o cumprimento das leis e a promoção de tudo quanto fosse conveniente aos interesses do Estado.

     Contudo, no plano constitucional, foi apenas com a Constituição de 1933 existiu uma primeira referência ao ministério como representante do Estado junto dos tribunais.

 Em 1976, a CRP autonomizou este órgão expressamente, sendo considerado um órgão dependente e autónomo, saindo assim da dependência do poder executivo e passando a ser considerado na categoria da magistratura.

 Contudo, as funções do Ministério Público possuíam alguma complexidade e já se assistia a um dualismo orgânico no desempenho de tais funções: num caso, agentes directamente provindos da administração, no outro magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado.

A reforma do contencioso de 2001/2002 veio determinar a perda de algum excesso de protagonismo do Ministério Público, o que contribuiu para a tentativa de um equilíbrio dos poderes dos intervenientes processuais apesar deste continuar a representar o Estado em juízo. Anteriormente, existiam dois momentos de intervenção necessária do MP em todos os processos: a emissão do visto inicial e do visto final. Podia também solicitar questões de índole processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa por parte do Tribunal. Hoje essa intervenção só ocorre uma única vez e apenas quando o Ministério Público considerar que ela se justifica em função da relevância da matéria em causa; além de não poder versar sobre questões de índole processual como anteriormente.

A função do Ministério Publico, no que diz respeito à coadjuvação do tribunal na realização do Direito, foi praticamente extinta. Neste domínio surge a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no ac. Lobo Machado c. Portugal e Vermeulen c. Bélgica[2], na qual se conclui constituir uma violação do art. 6/1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem a emissão de parecer escrita pelo MP sem que fosse assegurado o direito de resposta do demandante.

Assim, a intervenção do Ministério Público na discussão de julgamento foi eliminada, mas a sua função como auxiliar do tribunal continuou a assumir alguma relevância, designadamente nos seguintes momentos: pode pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º; nos processos impugnatórios, pode invocar causas de invalidade diferentes das que tenham sido arguidas na petição, assim como solicitar a realização de diligências instrutórias (nos 2 e 3 do artigo 85º CPTA); e pronunciar-se em sede de recurso quando não tenha sido parte na ação (artigo 146º/1 CPTA).

 

 

2-     Papel do MP na defesa da legalidade

 

Segundo o art 219º CRP, bem como o art 51ºETAF, cumpre ao MP “defender a legalidade democrática”.

Ora, esta defesa da legalidade democrática passa, no que nos cumpre agora referir, pela possibilidade do MP poder surgir no processo como autor, intentando ações contra a AP quando estão em causa direitos dos particulares protegidos constitucionalmente e que foram ou estão na iminência de seres lesados.

O CPTA, no seu regime comum da legitimidade ativa, propaga este mesmo entendimento na alínea b). Tendo em conta os diferentes artigos que tratam este problema de modo especializado ao longo do código, compreendemos que a decisão foi essencialmente a mesma: a de permitir ao MP a defesa dos particulares em juízo independentemente do tipo de vício em causa.

     Segundo o art 55º alínea b) tem legitimidade para impugnar um ato administrativo ilegal, avaliando discricionariamente a oportunidade de o fazer sem dependência do tipo de vício ou da natureza ou importância dos interesses ofendidos.

     No que toca ao art 62º tem legitimidade para assumir, no exercício da ação pública, a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor.

      Nos termos do art 68º/1 alínea b) tem legitimidade para intentar ações de condenação à prática de ato devido, quando o dever de praticar o ato resulte diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens referidos no nº 2 do artigo 9º.

      Pelo art 73º, tem ainda o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, assim como recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral.

     O Ministério Público tem ainda legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas cuja adoção seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação, segundo o artigo 77º/1 CPTA.

    Fora estas possibilidades de intervir no processo como autor, cabe ainda nos seus poderes para a defesa da legalidade democrática a consulta de processos e registos administrativos no exercício da ação pública (art 104º/2), legitimidade para requerer providências cautelares (artigo 112º/1), para pedir a suspensão com força obrigatória geral dos efeitos de qualquer norma em relação à qual tenham deduzido ou se proponha deduzir pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, (artigo 130º/2 CPTA), para interpor recurso de uma decisão jurisdicional, se esta tiver sido proferida com violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais, (artigo 141º/1 CPTA), para requerer a resolução de conflitos, segundo o artigo 136º CPTA entre outros constantes no mesmo diploma.

 

O que está em causa é uma iniciativa do Ministério Público no sentido da eliminação do ordenamento jurídico de atos jurídicos ilegais pelos quais a Administração formulou comandos concretos ou normativos, e da sua substituição por outros, quando sejam devidos.

Deste modo, a legitimidade ativa do MP, nomeadamente a constate do art 55º/1 alínea b) não esta dependente de qualquer tipo de vício, o que se justifica pela prossecução das suas atribuições uma vez que se esta possibilidade fosse restringida seria uma solução passível de inconstitucionalidade dada a sua incompatibilidade com o disposto no art 219º CRP.

 

3-     Papel do MP na representação do Estado

 

Ao Ministério Público compete a representação do Estado em juízo de modo a poder defender os interesses da comunidade, sendo que a natureza da representação é bastante discutida entre nós. Estaremos perante uma representação orgânica? Legal? Ou um mero patrocínio judiciário?

Ora, na representação, um sujeito atua em nome de outrem, realizando atos jurídicos em seu nome, quer a representação seja lega, quer seja voluntária. Por sua vez, a representação orgânica ocorre quando esta é assumida por um órgão do representado.

Tradicionalmente, tem-se entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma representação orgânica, na medida em que é um órgão do Estado.

    Mesmo nesses casos, o Ministério Público atua de forma imparcial e isenta e não comandado por qualquer órgão específico do aparelho do Estado.

Em matéria de representação processual do Estado, o CPTA apresentava, ainda há pouco tempo, uma solução dual. A representação processual cabia, por regra, a advogados ou licenciados em Direito com funções de apoio jurídico. Mas nos processos que tinham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, a representação processual do Estado era obrigatoriamente assegurada pelo Ministério Público, artigo 11º/2 CPTA. Ficavam assim excluídas do âmbito de representação do Ministério Público a representação das pessoas coletivas de direito público e a representação processual em todas as formas de ação que não diziam respeito a relações contratuais e responsabilidade. Tal restrição ao papel do Ministério Público devia-se ao facto de a representação processual do Estado operar apenas em ações em que estivessem em causa interesses patrimoniais estaduais.

Contudo, nos dias de hoje o art 11º CPTA já não faz esta distinção e, desde a lei 118/2019 consagra uma expressão inovadora e problemática, tendo dado azo a diversos problemas de interpretação (e que será analisada infra com o auxilio de uma decisão jurisprudencial) no que toca à não necessidade de representação do Estado pelo MP mas estando perante uma mera possibilidade, sendo que pode então o Estado ser representado por outras entidades.

 

Um outro assunto bastante discutido prende-se com a questão de saber se o Ministério Público representa o Estado apenas quando este é demandado numa ação ou se essa representação abrange também as situações em que o Estado é autor. Nestes casos pode discutir-se se estas ações se integram no âmbito da jurisdição administrativa e são reguladas pelas leis de processo administrativo, apesar de o demandado ser um particular. Ora, resulta do n.º 2 do artigo 11.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que o Ministério Público representa o Estado quer quando este assume a posição de autor, quer de demandado.

 

Finalmente, cumpre abordar ainda a problemática questão de saber se cabe ao Ministério Público representar o Estado nos litígios que corram perante tribunais arbitrais e julgados de paz. Existe, em ambos os casos, uma orientação firmada no sentido negativo, nomeadamente por parte do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

4-     A ação pública do Ministério Público e a representação do Estado - colisão

A propositura de uma ação por parte do Ministério Público em representação do Estado não se confunde com o exercício da ação pública intentada em nome da proteção dos interesses que lhe compete defender.

     Ora, nas situações em que a atuação por parte da Administração se encontra ferida de ilegalidade ou se mostra duvidosa a sua legalidade, o Ministério Público encontra-se num conflito de atribuições uma vez que deve sempre defender a legalidade democrática como manda a Constituição e por outro lado deve também representar o Estado em juízo (embora nos dias de hoje já não tenha de o fazer sempre).

     A posição maioritária na doutrina defende a aplicação da solução dada pelo art 69ºEMP - em caso de conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, o procurador da República solicita à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para representar uma das partes.

     Perante situações em que a ilegalidade não é óbvia, entendem os defensores desta posição que o Ministério Público deve ser representante do Estado, já que não deve este efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade ou ilegalidade do ato. Quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, o Ministério Público não deve representá-lo, respeitando-se o artigo 69º EMP.

     Ora, parece a posição mais acertada e conforme a Constituição, sendo que não se pode compreender que a entidade a quem a nossa Lei Fundamental atribui a competência para defender a legalidade democrática possa sem mais apresentar-se do lado oposto e defendendo o Estado quando este pratica atos contrários à mesma. É mais um dos argumentos, a par da nova alteração do CPTA de 2019 que retirou a totalidade dos poderes ao Ministério para representar o Estado, de que esta entidade se mostra mais ampla do que uma mera entidade de representação, estando a ela subjacentes valores primordiais a que deve respeito e prossecução.

 

 

5-     Questão da citação (art 25º/4 CPTA) depois da alteração de 2019 - análise do acórdão TAF Penafiel 03/07/2020

O recente acórdão do TAF, datado de 03/07/2020, trata com clareza a matéria da representação do Estado pelo Ministério Público, nomeadamente depois das alterações recentes ao CPTA através da lei 118/2019 que vieram criar problemas fundamentais a este respeito e que carecem de ser explicitados e fundamentados.

O problema centra-se na possível inconstitucionalidade do art 11º/1 e art 25º/4 CPTA, com a sua atual redação, por violarem o disposto no art 219º CRP e por esvaziarem a intervenção do MP na representação do Estado, algo que lhe é atribuído constitucionalmente.

No caso concreto, o Ministério Público inconformou-se com um Despacho proferido a 11/02/2020 pelo mesmo Tribunal onde este último indeferiu arguição de nulidade da falta de citação do réu (que era o Estado Português) por considerar que a citação, feita nos termos do art 25º/4, não seria inconstitucional e não poria em causa todo o processado posterior à petição inicial. A ação em causa no primeiro processo foi intentada contra o Exército Nacional, integrado como órgão do Ministério da Defesa Nacional a Caixa Geral de Aposentações, IP e o Estado Português, tendo, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado.

Ora, a lei 118/2019, de 17 de Setembro estabeleceu uma nova norma, desta feita o art 25º/4, de onde resulta que quando o Estado é demandado já não é citado o Ministério Público, em representação deste mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado. Esta norma, conjugada com o art 11º/1 alterado pela mesma lei, que deixou de afirmar que o estado seria sempre representado pelo MP para passar a defender uma eventual possibilidade de tal acontecer, foi o suficiente para despoletar este problema.

Foram inúmeros os argumentos expostos por ambas as partes.

Da parte do Ministério Público a argumentação foi sempre no sentido da incompatibilidade das novas alterações com o art 219º CRP uma vez que a representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público e com estas mudanças fica esvaziado o essencial da função do MP nos Tribunais Administrativos na sua faceta de representante do Estado-Administração que tem valor constitucional através da norma imperativa em causa.

Um dos argumentos prende-se com a comparação entre o art 11º/1 CPTA e o art 24º/1 CPC onde no segundo preceito a representação do Estado pelo MP constitui a regra ao contrário do primeiro, que parece constituir a exceção.

Já quanto ao art 25º/4 é defendido que este “destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual” uma vez que não é citado o órgão que tem poderes para representar o Estado e sim um outro sem poderes legais de representação.

Acresce que a norma do nº 4 do art.º 25º CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar ¯os termos da (…) intervenção em juízo do ¯serviços a quem aquele entenda ¯transmitir a citação, que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao Ministério Público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o Estado.

Na visão do Ministério, o Centro passará a decidir, caso a caso, se o Ministério Público representa ou não o Estado, sem que haja qualquer indicação dos critérios que conformam tal decisão, sendo que o teor da norma constitucional constante do artigo 219º, nº 1 da CRP não permite a supressão do Ministério Público como representante do Estado.

O Ministério da Defesa Nacional, parte recorrida neste acórdão, apresentou uma defesa bastante explícita e organizada, onde apesar de para o Tribunal se ter focado na interpretação individual do art 11º/1 CPTA sem a conjugação com as restantes normas em análise, conseguiu demonstrar bem a sua perspetiva (que ia de encontro com a decisão recorrida).

A parte tentou demonstrar que as normas ínsitas nos artigos nos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não padecem de qualquer inconstitucionalidade, devendo por isso ser aplicadas em concreto e, por conseguinte, inexiste qualquer nulidade processual por o Ministério Público não ter sido citado, devendo por isso manter-se o processado posterior à petição inicial.

Para tal, invoca que do art 219º CRP não podemos retirar a inexistência de exceções a introduzir pelo legislador à representação dos interesses do Estado pelo Ministério Público e que não poderia haver outras normas legais a admitir a representação do Estado por outras entidades.

Além disso, o art 11º/1 não implica um completo esvaziamento das competências constitucionais que foram e são reconhecidas ao MP porque em caso nenhum proíbe que o Estado seja representado pelo MP, apenas defende que possa haver situações em que a representação em juízo possa ser feita de outro modo.

Para sustentar este entendimento, invoca também a posição da Comissão Constitucional, que, no seu Parecer n.º 8/82, de 9 de Março de 1982, foi muito clara no sentido de evidenciar que o Ministério Público não tem o monopólio da representação do Estado em tribunal e que esta pode ser validamente atribuída a outros órgãos ou entidades. Ora, a redação do art 219º CRP está em maior consonância com a jurisprudência constitucional, mormente com o Parecer da Comissão Constitucional n.º 8/82.

Para além do mais, no Direito Comparado vemos muito poucos ordenamentos a seguir uma representação exaustiva do Estado por um órgão individual, que no caso será o Ministério Público.

Relativamente ao art 25º/4, este também se apresenta plenamente conforme com a constituição uma vez que não atribui diretamente poderes funcionais ao Centro de Competências Jurídicas do Estado para assegurar a representação do Estado, como alega o Recorrente, mas antes para operar como órgão responsável pela receção e encaminhamento de citações judiciais sempre que seja demandado o Estado ou mais de um ministério.

Conclui-se também no sentido de que o facto de o Centro de Competências Jurídicas do Estado constituir o destinatário das citações relativas a processos do contencioso administrativo em que o mesmo Estado seja demandado em nada afetará a competência constitucional genérica do Ministério Público de representação do Estado em juízo. O Centro de Competências Jurídicas do Estado não substitui o Ministério Público na sua competência genérica de representação do mesmo Estado uma vez que não dispõe de competência geral para representar o Estado junto dos tribunais.

Ora, vistos os argumentos, o tribunal pronunciou-se no sentido de negar qualquer inconstitucionalidade das normas em questão, partilhando dos entendimentos da parte recorrida na ação e não do Ministério Público.

Para o Tribunal, do texto constitucional, e do sentido que dele brota, não resulta que apenas ao Ministério Público esteja confiada a representação do Estado, nomeadamente no que à representação em juízo diz respeito. Essa deve ser sim a regra geral, mas nada impõe que não possam existir exceções.

Foi considerado também que a mera circunstância de a citação ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado possa afetar a representação do Estado pelo MP. Trata-se, com efeito, de uma questão instrumental, de escolha do destinatário da citação, e nada mais.

Além disso, o Tribunal explicita uma das possíveis razões para a alteração prevista na lei 118/2019, prendendo-se esta com o término do modelo dualista entre ação administrativa comum e ação administrativa especial com âmbitos e regras processuais distintas.

Após esta alteração do sistema, passaram a poder ser cumulados pedidos que anteriormente pertenciam a cada uma daquelas distintas formas de processo, daí emergindo múltiplas dificuldades ao nível da determinação da legitimidade passiva. Assim se explicará que a citação deva ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o Estado, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o Estado.

Nestes termos, e depois de fundamentada, a decisão do tribunal foi então negar provimento ao recurso.

6-     Síntese 

Para finalizar, cumpre tecer um comentário à decisão do Tribunal. Na minha perspetiva, a argumentação do mesmo face à alteração do art 11º/1 CPTA e da sua conformação com a Constituição (art 219º) foi a mais acertada, sendo que em nada está explicito no preceito constitucional que o Ministério Público teria a exclusividade dos poderes de representação do Estado, pelo que existir outras formas de representação não esvazia os poderes do Ministério. Quanto muito poderá reduzi-los, mas não se concebe como isso possa ser contrário à norma da Constituição.

Além do mais, a defesa da legalidade democrática, que corresponde a outra das atribuições do órgão em causa, por vezes colide com a representação do Estado – como já tivemos oportunidade de demonstrar - o que também demonstra que seria impossível, para conseguir prosseguir esta atribuição tão fundamental para os cidadãos, não existir uma segunda via de representação.

Bibliografia

AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017, 3ª edição

FREITAS DO AMARAL, Diogo, "Curso de Direito Administrativo"; volume II; 2ªedição; Almedina

VIERA DE ANDRADE, José, A justiça administrativa: lições, Coimbra, Almedina, 10ª edição, 2009

CANOTILHO, Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada - Volume II. 4o edição. Coimbra editora, 2010. 

CANOTILHO, Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada - Volume I. 4o edição. Coimbra editora, 2010. 

 

Webgrafia

https://www.ministeriopublico.pt/historiamp/historia

https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/634-951.pdf

https://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/272.pdf

 

 Marta Alexandra Guerreiro Viegas

Nº58399

 

                

 

 



[1] conhecido por "decreto sobre a reforma das justiças" e assinado, em Ponta Delgada, pelo regente D. Pedro, duque de Bragança, em nome de D. Maria II.

 

[2] TEDH,  Acórdão Lobo Machado contra Portugal de 20 de Fevereiro de 1996

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