O papel do Ministério Público no contencioso administrativo e a Reforma de Setembro de 2019.


O presente comentário incidirá, essencialmente, numa caracterização geral do Ministério Público (dorovante, MP) enquanto órgão constitucional, focando especificamente na sua função de representante do Estado na defesa da legalidade democrática e promoção da realização do interesse público conforme a sua consagração constitucional[1], apelando particularmente à alteração do seu estatuto pela Lei 118/2019 de 17 de setembro.

O Ministério Público é uma entidade que goza de estatuto próprio e de autonomia em relação aos demais órgãos de poder[2], sendo constituído por um conjunto de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados[3] cuja gestão fica a cargo da Procuradoria Geral da República[4] [5].

Atentando ao EMP na versão da Lei nº 68/2019 de 27 de Agosto, podemos encontrar no artigo 2º a definição de MP como sendo quem “representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal orientado pelo princípio da legalidade democrática nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da Lei”.

O artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (dorovante, ETAF) elenca genericamente as atribuições do Ministério Público, referindo que “Compete ao Ministério Público representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere”.

Ora, focando-nos na função “representação do Estado” cumpre analisar a redacção, anterior e posterior do artigo 11º, 1 CPTA referente ao patrocínio judiciário.

Estabelecia o nº1 do artigo 11º[6] que as entidades públicas podiam fazer-se “patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em Direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público”. Significava isto que  nas acções respeitantes ao Estado, a representação deste competia obrigatoriamente ao MP. Todavia, esta representação obrigatório vinha sendo questionada. Na visão do professor Mário Aroso de Almeida,  “atendendo ao estatuto de magistratura autónoma que corresponde ao Ministério Público na nossa ordem constitucional, os agentes do Ministério Público não têm por que ser, nem devem ser, advogados do Estado, pelo que desde há muito defendemos que o caminho que, nesta matéria, entre nós deveria ser seguido era o de se criar um corpo próprio de advogados do Estado, submetido a um estatuto disciplinar e deontológico similar ao dos advogados, ao qual deveria ser atribuída, em regra, a função de exercer o patrocínio do Estado, substituindo, tanto o Ministério Público nas ações que são propostas contra o Estado, como os solicitadores ou licenciados em Direito ou em solicitadoria, nas ações que são propostas contra Ministérios”.

Neste sentido, a alteração executada à redacção do artigo 11º, nº1 CPTA[7] reside na introdução da expressão “possibilidade de”. Com efeito, desta solução retira-se a ideia de se instituir a representação do Estado pelo MP como uma possibilidade de que o Estado dispõe ao lado das demais que se encontra, previstas no artigo 11º, nº1. Ainda na lógica do professor Mário Aroso de Almeida, esta alteração trata-se “de um passo positivo, que introduz a flexibilidade necessária, num domínio em que, deste modo, se permite ao Estado avaliar, em cada caso, qual é a solução mais adequada”.

Como hoje estabelece o artigo 25º, nº 4 CPTA, quando o Estado se encontra em juízo a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, a quem competirá decidir, em função da concreta configuração do caso, se a representação do Estado será assegurada pelo Ministério Público ou por outro profissional, expressamente designado para o efeito, ao contrário do que sucedia anteriormente, em o Estado considerava-se citado nas ações em que era parte, na medida em que o MP fosse regularmente citado. Contudo, esta temática da citação invocada acaba por se demonstrar um tanto ambígua: se é certo que os casos em que o MP não atua na acção como representante do Estado, seguimos o exposto no artigo 25º, nº 4 CPTA, já não será tão certo que o mesmo preceito se deva adotar, quando existe a possibilidade da atuação deste como representante do Estado. Em jeito de possível resposta, parece ser o mais correto adotar a letra do artigo 25º, 4 pois, em primeiro lugar, é o único preceito legal disposto para efeitos de citação do Estado; em segundo lugar, de modo a evitar confusões de duplas citações para os casos em que a secretaria não sabe quem citar, é certo e seguro apostar no previsto no artigo 25º, 4, citando o Centro de Competências Jurídicas do Estado.

 

 Constança Teixeira, nº58221, subturma 3



[1]Cfr. art.º 216º Constituição da República Portuguesa (CRP).

[2] Cfr. artigos 219º, nº2 da CRP e 3º do Estatuto do Ministério Público (EMP).

[3] Cfr. art.º 219º, nº4 da CRP.

[4] Cfr. 219º, nº 5, e 220º da CRP.

[5] ANDRADE, José Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina.                                                                       

[6] Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro

[7]  “Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário (...) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público” - Lei 118/2019 de 17 de Setembro.

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