O Papel do Ministério Público no Contencioso Administrativo

 O Papel do Ministério Público no Contencioso Administrativo

I. Estando ultrapassada a fase do contencioso objetivista e, atualmente, vivermos num panorama de um contencioso administrativo subjetivista, as partes no processo assumem uma enorme relevância.Dentro desta categoria temos os autores e, claro está, por oposição, os demandados. Nos termos do artigo 268º, nº4 e 5 da CRP é reconhecido a todos – vocábulo que pretende incluir quer pessoas singulares, quer pessoas coletivas - o direito de recorrer à justiça administrativa para defender direitos e interesses legalmente protegidos. Pelo que acabei de afirmar, entende-se que tanto pode estar em causa a defesa de um direito subjetivo, como  um interesse que, por alguma razão, mesmo não sendo um direito subjetivo deva ser protegido. Importa chamar à colação, a título ilustrativo, aquilo que se entende por ação pública, cuja consagração legal se encontra no artigo 9º, nº2. Trata-se de uma disposição atinente à legitimidade ativa e em que não está em causa uma defesa realizada por particulares, mas sim por entidades públicas. Esta é precisamente uma das figuras em que o Ministério Público assume bastante relevância. O CPTA reconhece, ao longo do seu Código, poderes amplos para que este possa propor ações, seja para a defesa da legalidade, do interesse público, de interesses difusos ou de direitos fundamentais, vide, a título de exemplo, o disposto no artigo 9º, nº2, 55º, nº1 b) e 68º, nº1 b) do CPTA.                                                                                                      

II. O Ministério Público assume uma grande complexidade e um papel fundamental no contencioso administrativo. Antes de ilustrar o papel deste órgão neste ramo, considero importante fazer umas breves notas sobre o mesmo. Está em causa, antes de mais, um órgão independente da magistratura judicial, e que se insere na função judicial dos estados. Não obstante tratar-se de um órgão independente da magistratura judicial tem necessariamente de se reger e pautar por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade.                                                                                                                
As funções do Ministério Público encontram-se elencadas no artigo 51º do ETAF e correspondem às seguintes: “Compete ao Ministério Público representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere”.                                                                                                                                              
Como referido supra, este pode assumir a posição de autor nas situações elencadas no artigo 9º, nº2 do CPTA, i.e, quando estejam em causa processos destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, mas pode ainda representar o Estado no caso de estarmos perante situações em que certas ações sejam propostas contra este, funcionando como uma espécie de seu advogado. Pode também intervir em certos processos em que nem sequer seja parte, quando entenda que a sua presença é fundamental. Anteriormente esta intervenção só poderia ocorrer nos casos que seguissem a forma de ação administrativa especial, mas atualmente o seu âmbito é bem mais alargado, passando a ter em consideração todas as situações mencionadas nesta exposição, ou seja, quando intervém como autor ou, pelo contrário, como representante, ou em nenhum destes casos, mas em que seja fundamental a sua intervenção. Por outro lado, assume também a posição de autor, requerendo o seguimento de processo, nos casos em que este tenha terminado por desistência ou por outra circunstância própria do autor. Tem ainda legitimidade para intentar ações de condenação à prática de ato devido, quando o dever de praticar o ato resulte diretamente da lei - nº2 do artigo 9º - 68º, nº1 b) CPTA.; Ao Ministério Público cabe, ainda, contribuir para melhorar o esclarecimento da aplicação do direito, emitindo como que um parecer. Este órgão, que goza de autonomia institucional, tem como grande objetivo garantir a prossecução do cumprimento da lei de acordo com os princípios vigentes no nosso ordenamento jurídico. Aliás, bem se infere tal conclusão, desde logo, a partir da nossa lei fundamental e do seu leque muito vasto de funções. Importa ressalvar que a representação do estado deixou de ser obrigatória, passando a ser uma mera possibilidade (com a revisão de 2019). 
A título ilustrativo de que este  desempenha diversas funções, podemos desde logo apontar o termo utilizado, na página deste, para a sua caracterização dado que nos diz o seguinte " O Ministério Público (…) caracteriza-se pela sua polimorfia, distribuindo-se a sua atuação por áreas bem diversas”.                                                                                                                

III. Parece-me importante destacar alguns dos deveres estatutários previstos no artigo 4º do EMP que, na minha opinião, têm mais contacto com a área do contencioso administrativo e ajudam a concretizar o exposto anteriormente, nomeadamente: a representação do Estado; o dever de intentar ações no contencioso administrativo para defesa do interesse público, dos direitos fundamentais e da legalidade administrativa, o exercício de funções consultivas; a fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos e, ainda, o papel de assumir a defesa de interesses coletivos e difusos.                                   

IV.Ora, o Ministério Público tem como função, repito, representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar. É interessante e intrigante reparar em como simultaneamente este órgão pode agir em defesa dos interesses de particulares - que podem, na opinião destes, ser violados por atuação do próprio estado -  como ter de representar o Estado. Como será que isto se compatibiliza? Qual a solução quando há uma colisão entre o dever de representação do Estado por parte do Ministério Público e a defesa da legalidade democrática? Utilizando um conceito bastante "querido" pelo professor Vasco Pereira da Silva, trata-se de uma situação de verdadeira esquizofrenia. Aqui a doutrina tende a dividir-se. VIEIRA de ANDRADE defende que a solução passa por não haver representação por parte do Ministério Público, retirando-se do processo e cabendo, antes, ao Estado escolher um advogado ou alguém com competência suficiente para representar a Administração. Outra parte da doutrina recorre ao artigo 93º do EMP que dispõe o seguinte:

“1 - Em caso de conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, os magistrados coordenadores das procuradorias da República de comarca e administrativas e fiscais, com faculdade de delegação, solicitam à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para representar uma das partes.
2 - Quando uma das entidades referidas no número anterior seja o Estado, a solicitação deve ser dirigida ao diretor do Centro de Competências Jurídicas do Estado - JURISAPP.
3 - Caso o JURISAPP não tenha disponibilidade para satisfazer uma solicitação feita nos termos do número anterior, o seu diretor reencaminha, atempadamente, a solicitação à Ordem dos Advogados, comunicando a remessa à entidade requerente.
4 - Havendo urgência, e enquanto a nomeação não possa fazer-se nos termos do n.º 1, o juiz designa advogado para intervir nos atos processuais.
5 - Os honorários devidos pelo patrocínio referido nos números anteriores constituem encargos do Estado”.

V. Atualmente, e por tudo o que eu referi, podemos classificar o Ministério Público e olhar para ele não apenas como um auxiliar, mas com um verdadeiro sujeito processual, sendo que, ainda há certas controvérsias que são geradas pela própria origem histórica. Este antes tinha um estatuto apenas de auxiliar do tribunal, mas hoje, como se pode observar por tudo o que mencionei, assume um papel extremamente relevante que contribui para a boa administração.


Bibliografia

- VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª Edição (2009);
- MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 3ª Edição (2017)
- JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), Almedina, 15ª Edição (2016);
- RICARDO PEDRO, Representação do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a alguma questões, COMENTÁRIOS À REVISÃO DO ETAF E DO CPTA, AAFDL Editora, 3ª Edição (2017)
- http://www.ministeriopublico.pt/pagina/o-ministerio-publico


                                                                                                                   Inês Visitação, nº 58237




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