O princípio da tutela jurisdicional efetiva e a sua relação com as causas de legitimas de inexecução da sentença - Carolina Nabais

 O princípio da tutela jurisdicional efetiva e a sua relação com as causas de legitimas de inexecução da sentença

O nosso ordenamento jurídico consagra em diversos preceitos o princípio da tutela jurisdicional efetiva, que se encontra previsto tanto nos artigos 20º e 268º/4 CRP, como, no artigo 2º CPTA.

O princípio de tutela jurisdicional efetiva consubstancia-se num direito fundamental dos indivíduos que está associado à ideia de Estado de Direito. Se tal proteção não existisse o direito de acesso aos tribunais estaria sujeito à arbitrariedade do destinatário no que toca à execução da sentença em causa. Do texto constitucional é ainda possível destacar como corolário do citado princípio dever de executar a sentença, nos termos do artigo 205º CRP.

 

Tal como no processo civil também no processo administrativo temos a presença de processos executivos em que, lançando mão de um título executivo, se pretende restabelecer a situação de facto existente, em conformidade com o Direito, através da adoção das providências necessárias à situação em concreto. Esta matéria encontra-se regulada nos artigos 157º a 179º do CPTA. Sendo que, nos termos do artigo 157º/1, este diploma apenas regula a execução das sentenças proferidas pelos tribunais administrativos contra entidades públicas. Caso esteja em causa a execução de uma sentença contra particulares, esta é regulada por legislação especial, ou na falta dela, pelas normas de direito civil (art.157º/5 CPTA).

 

O CPTA distingue três tipos de processos executivos a saber: execução para a prestação de factos ou de coisas; execução para o pagamento de quantia certa; execução de sentenças de anulação de atos administrativos; a todos estes tipos de execuções têm em comum a obrigatoriedade de terem uma sentença como título executivo, cfr. artigo 158º/1 CPTA. 

 

Acontece, porém, que no que concerne à execução de prestação de factos ou de coisas, assim como, à execução de sentenças de anulação de atos administrativos é possível destacar na lei um regime excecional de “causas legítimas de inexecução”, artigos 163º e 175º CPTA respetivamente. 

 

Como causas legítimas de inexecução o legislador destacou a impossibilidade absoluta e o excecional prejuízo para o interesse público. Será sobre estas duas realidades que recairá uma análise mais detalhada de modo a determinar se este instituto fere de algum modo tutela jurisdicional efetiva constitucionalmente consagrada ou, se por outro lado, poderá ser articulada de modo harmonioso com este princípio não colocando em causa a segurança jurídica.

 

Ora, no que concerne à impossibilidade absoluta esta consiste num juízo da realidade dos factos na medida em que a obrigação decorrente da sentença só pode ser cumprida se o dever a esta subjacente for física e legalmente possível de cumprir. Esta impossibilidade terá também de revestir carater definitivo e poderá ser total ou parcial, sendo que, neste último caso, deverá a sentença ser cumprida relativamente à parte que ainda é passível de cumprimento. 

 

Caso o objeto da obrigação decorrente da sentença seja, definitiva e totalmente, física e legalmente impossível, então o objeto da obrigação em causa extingue-se não deixando de existir a obrigação do seu cumprimento por este ser materialmente impossível. Porém perante esta hipótese há que acautelar as expectativas que os particulares tinham no cumprimento da sentença, ora o legislador nestas situações prevê que o particular tenha direito a uma indemnização nos termos do artigo 166º CPTA. 

 

Ainda relativamente à causa de inexecução da sentença esta só poderá proceder caso a impossibilidade não ocorra por culpa imputável do devedor, pois caso seja culposa não seria lícita tal inexecução.

 

Relativamente a esta figura não parece que se levantem grandes problemas acerca da sua articulação com o princípio da tutela da jurisdição efetiva pois só em casos de impossibilidade é que o legislador prevê tal desvio, e mesmo quando o permite, tentou de certo modo acautelar as expectativas dos privados através da indemnização que lhes garante.

 

Porém o cerne da questão em causa colocar-se-á relativamente à articulação do supra referido principio e da modalidade de causa legítima de inexecução que se consubstancia no “grave prejuízo para o interesse público” pois esta depende de um juízo de valoração por parte do julgador entre o cumprimento da legalidade e o interesse público em jogo no caso concreto. Caso o julgador opte por dar prevalência ao interesse público concreto, por considerar que este ao não ser prosseguido terá mais prejuízos do que a prossecução da legalidade e justiça, temos um desvio ao direito de tutela jurisdicional efetiva, isto é, um direito consagrado constitucionalmente o que poderá trazer problemas de segurança jurídica pois este julgamento é feito apenas com base num juízo valorativo do julgador.

 

Quanto a esta causa de inexecução da sentença na doutrina é possível encontrar diversas posições.

 

Os autores que são a favor desta figura, como os Professores Diogo Freitas do Amaral, Vieria de Andrade, Mário Aroso de Almeida, entendem que os interesses coletivos deverão prevalecer sobre os individuais, desde que tal se justifique. Quanto à possível lesão dos interesses dos particulares e ao desrespeito pelo direito de tutela jurisdicional efetiva dizem estes autores que a indemnização que lhes é concedida vem de certo modo restabelecer a justiça. Concluem que esta se apresenta como uma ferramenta de flexibilização que permite à administração pública, perante o caso concreto, assegurar a ordem pública, tentado, no entanto, não deixa o particular de algum modo sem proteção. Referem ainda que este se trata de um mecanismo excecional ao qual apenas se recorre em casos em que tal ponderação se realmente se justifique. 

 

Contrariamente temos autores que são contra esta consagração , entendem que se trata de uma válvula de escape que é dada à administração e que lhe permite fugir ao cumprimento da legalidade e justiça decorrente das sentenças que estava obrigada a cumprir. Para sustentarem a sua posição estes autores defendem que o conceito indeterminado “grave prejuízo para o interesse público” apresenta uma grande margem de discricionariedade que atribui ao julgador espaço para através de uma argumentação minimamente sagaz conseguir fazer valer interesses públicos mesmo que tal não se justifique.

 

Em jeito de conclusão é possível retirar desta breve exposição que em causa temos um desvio a direitos constitucionalmente consagrados que, contudo, apenas podem ser afastados em casos excecionais que realmente o justifiquem. Quando à inexecução por impossibilidade absoluta, não parece que se levantem graves questões, pois só será admissível tal desvio em casos de impossibilidade absoluta, definitiva, não culposa, total ou parcial, física ou legalmente impossível. Todos estes requisitos levam a que não seja dada ao julgador margem de discricionariedade para distorcer o cumprimento da legalidade nestes casos.

 

Porém o “grave prejuízo para o interesse público” já levanta algumas questões mais problemáticas pois, ao estarmos perante um conceito indeterminado, o julgador é dotado de uma margem de discricionariedade que poderá levar à distorção da situação em causa colocando em primeiro lugar interesses públicos que muitas vezes não mereceriam prevalecer sobre o Princípio da tutela jurisdicional efetiva. 

 

Para que esta figura possa operar sem de algum modo a administração se furte ao cumprimento da legalidade e da justiça haverá sempre que ter em consideração por um lado o interesse público na execução de sentenças e por outro o interesse público em concreto. Da ponderação destes interesses pelo julgador deverá resultar a conclusão, inequívoca, de que a concretização da sentença traria para a comunidade graves prejuízos, de tal ordem que iria exigir à comunidade sacrifícios que, em comparação com a preterição da execução da sentença, justificam o sacrifício dos interesses do particular. Em todo o caso, este nunca ficaria sem proteção jurídica pois o legislador, ao prever no artigo 166º CPTA a atribuição de uma indemnização ao lesado, está de algum modo a acautelar o prejuízo causado, tentando assim restabelecer a justiça.

 

A consagração deste regime poderá, sem dúvida, causar problemas de segurança jurídica pois estamos perante um conceito demasiadamente indeterminado, porém nunca caberá à administração determinar as balizas deste conteúdo, pois terá sempre de cumprir o estabelecido na Constituição tal como estabelecido no artigo 266º CRP. Logo, apesar desta margem de discricionariedade em última análise a estaria sempre sujeita a cumprir um bloco de legalidade. 

 

Concluindo, apesar desta figura permitir o afastamento de um princípio constitucionalmente consagrado, este afastamento é em última análise permitido pelo legislador constitucional e, por isso mesmo, ainda que o particular possa encontrar-se numa situação de fragilidade esta justificar-se-á por motivos de interesse coletivo e que não necessários para que se possam cumprir os fins do Estado Direito. 

 

Bibliografia: 

 

 AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017, 3ª edição

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina, 1997;

VIERA DE ANDRADE, José, A justiça administrativa: lições, Coimbra, Almedina, 10ª edição, 2009

CANOTILHO, Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada - Volume II. 4o edição. Coimbra editora, 2010. 

CANOTILHO, Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada - Volume I. 4o edição. Coimbra editora, 2010. 

Freitas do Amaral, Diogo; "Curso de Direito Administrativo"; volume II; 2ªedição; Almedina

Revista Centro de Estudos Judiciários – Processo Administrativo, Jusrisdição Adminsitrativa e Fiscal, setembro 2020

E-book Centro de Estudos Judiciários – Contencioso Tributário – 2013/2014

Temas e problemas de processo administrativo – Insituto de ciências jurídico-políticas – 2010.

Carolina Nabais nº58573


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