Os contrainteressados - Relevância da figura no contencioso administrativo e o problma da determinação dos mesmos.

1. Introdução.

Através da realização deste escrito, pretendo fazer uma breve análise de uma figura típica do Contencioso Administrativo - o contrainteressado - situando-a no âmago das relações multilaterais dos sujeitos processuais para, a posteriori, desenvolver uma recensão analítica da jurisprudência resultante do contraste de várias decisões administrativas, bem como das divergentes posições da doutrina, com o objetivo final de indagar sobre a determinação de quem deve ser obrigatoriamente demandado como contrainteressado no âmbito do processo administrativo.

2. Enquadramento geral.

Historicamente, os contrainteressados surgiam no processo como partes acessórias, ao lado das partes principais (autor e réu). A modernização do Direito Administrativo acabou por ultrapassar a visão tradicional do contencioso administrativo, configurado em moldes bilaterais, construindo-se também, relações administrativas multilaterais, no sentido em que há um conjunto alargado de pessoas cujos interesses podem ser afetados pela atuação da Administração, ainda que não sejam os seus diretos e imediatos destinatários. Exatamente neste sentido, como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, “as relações jurídicas relacionadas com o exercício de poderes de autoridade por parte da Administração são complexas no plano subjetivo, apresentando-se com uma estrutura poligonal ou multipolar, que envolve um conjunto de pessoas cujos interesses são afetados pela conduta da Administração”.

Surgem, neste contexto, as posições destes “terceiros”. “Terceiros”, não na verdadeira aceção do termo, dado que “todos os sujeitos da relação jurídica administrativa multipolar material, desde que sejam titulares de direitos subjetivos públicos em face do objeto do litígio”, devem corresponder a partes processuais com “estatuto equivalente, na relação jurídico-processual”, até porque o legislador, expressamente estende a legitimidade passiva aos contrainteressados, nos termos do artigo 10º, nº1 CPTA in fine, consagrando a sua génese de intervenção a título principal no litígio, que não se confunde com os verdadeiros terceiros que se encontram previstos no Artigo 10º, nº10 CPTA. De facto, quanto a este aspeto, o código faz uma distinção clara.

Deste modo, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, apesar da denominação pouco feliz que se encontra vertida nos artigos 57º e 68º, nº2 do CPTA, os contrainteressados “outra coisa não são que sujeitos principais da relação jurídica multilateral, enquanto titulares de posições jurídicas de vantagem conexas com as da Administração”[1]. Portanto, há aqui uma equiparação destes sujeitos processuais à entidade demandada, sendo que se encontram ambos no lado passivo da relação processual. O próprio Professor infere que interpretação sistemática do Código obriga a considerar que os denominados contrainteressados são partes no processo.

Assim sendo, esta estrutura multipolar que resulta da afetação que eventuais decisões resultantes da colisão da Administração com outro particular podem implicar na esfera destes “opositores particulares”, seja na forma de lesões ou efeitos benéficos para os mesmos, teve que se lhes ser dada proteção jurídica ao nível do contencioso.

2. Enquadramento legal.

Realizado este enquadramento sintético, cumpre ainda fazer uma reflexão sobre a definição dos critérios relativos à legitimidade processual dos contrainteressados.

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos prevê a participação destes sujeitos processuais, no âmbito dos processos impugnatórios, determinando que, nos termos do Artigo 57º, “além da entidade autora do ato impugnado, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados”. O mesmo preceito revela as exigências para considerarmos que estamos perante estes sujeitos processuais, fazendo referência à verificação de um de dois requisitos: primeiramente, que o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar aquela parte; por outro lado, caso não haja prejuízo, ainda se considera contrainteressado aquele que tiver um legítimo interesse na manutenção do ato que é impugnado.

O mesmo diploma legal também prevê a participação dos contrainteressados nos processos de condenação à prática de atos administrativos. Nestes termos, estatui o artigo 68º, nº2 que além da entidade responsável pela situação de omissão ilegal, são obrigatoriamente demandados aqueles a quem a prática do ato omitido possa diretamente prejudicar ou que tenham interesse legítimo em que ele não seja praticado.

Nestes termos, parece existir consonância destas disposições com o estabelecido no artigo 10º, nº1 do CPTA, referente à legitimidade passiva. Efetivamente, resulta deste preceito que “cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”, sendo percetível que o escopo deste preceito é atribuir, embora não exclusivamente, legitimidade passiva aos contrainteressados.

De facto, seguindo o raciocínio do Professor Mário Aroso de Almeida, e atentando a este enquadramento legal, o legislador demonstra a preocupação de, tanto no artigo 57º, como no artigo 68º, nº2, densificar o próprio conceito de contrainteressados, circunscrevendo-o, às pessoas “que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”. Denota-se aqui uma finalidade de “objectivizar a operação de delimitação do universo dos titulares de interesses contrapostos aos do autor que devem ser demandados no processo”. Nesta linha raciocínio, seguindo uma interpretação mais estrita e literal que possa resultar destes preceitos legais, podemos conceber, num primeiro momento, que constituem contrainteressados e, portanto, devem ser demandados, aqueles que sejam titulares de interesses contrapostos aos do autor (Artigo 10º, nº1 CPTA), tanto em processos de impugnação de atos administrativos (Artigo 57º), como em processos de condenação à prática de atos administrativos (Artigo 68º, nº2).

3. Posição processual dos contrainteressados: Litisconsórcio necessário passivo?

Ainda antes de cogitar sobre a efetiva determinação de quem pode ser contrainteressado, seguindo outras interpretações mais desapegadas à letra da lei e perquirir sobre alguns Acórdãos, cabe refletir sobre a posição processual dos contrainteressados uma vez que, como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, esta figura, em processo administrativo “tem sido reconduzida, sem reflexão aprofundada, ao instituto do litisconsórcio necessário passivo” e assim o é pela grande maioria da doutrina.

Não obstante, esta determinação da posição processual dos contrainteressados ao instituto do litisconsórcio necessário passivo, não deixa despoletar algumas inquietações. O próprio Professor Mário Aroso de Almeida sugere que a recondução desta figura a este instituto deve ser objeto de revisão crítica. Isto deve-se principalmente, na ótica do Professor, ao facto de que, tanto nos processos impugnatórios, como nos processos de condenação à prática de atos administrativos, o objeto dos processos não é definido em referência à situação subjetiva dos contrainteressados, detentores de interesses contrapostos aos do autor, mas, efetivamente, à posição da Administração e ao seu posicionamento “no quadro do exercício dos seus poderes de autoridade”. Ou seja, na lide, a discussão centra-se em determinar “se a Administração agiu ou não de modo ilegal e, por isso, se se anula ou não o ato administrativo, ou se se condena ou não a Administração a praticar o ato recusado ou omitido.” 

A posição do contrainteressado vai surgir nesta relação multipolar como a de um interessado que, sendo beneficiário do ato ilegal ou podendo ser afetado pelo ato devido, tem interesse em que ele não seja anulado, ou que ele não seja praticado. Portanto, tem um interesse em que a Ordem Jurídica permaneça intocada.

Ora, numa situação de pluralidade de partes, o litisconsórcio passivo pressupõe a cotitularidade da relação jurídica entre os litisconsortes e, nestes termos, a existência de uma única relação material, como se houvesse aqui um único demandando. Como já fiz referência, a doutrina, dominantemente, considera que os contrainteressados atuam em litisconsórcio necessário passivo com a entidade pública e entre eles próprios, dado que têm de estar todos em processo, sob pena de não ficarem vinculados ao mérito da causa, ao respetivo caso julgado. A doutrina infere, nestes moldes, que se trata, por um lado, de litisconsórcio passivo porque os pedidos são formulados contra todas as partes, havendo unicidade do pedido. Por outro lado, o litisconsórcio passivo é necessário porque, a sua preterição, i.e, a falta de citação dos contrainteressados no processo, por um lado obsta ao conhecimento da causa, nos termos do artigo 89º, nº4, al. e), e, por outro lado, implica a inoponibilidade da decisão judicial que possa a vir ser proferida à revelia dos contrainteressados, nos termos do artigo 155º, nº2). Cabendo esta indicação ao autor da ação, aquando da formulação da petição inicial, a sua falta acarreta ilegitimidade passiva, sancionada com a rejeição da peça processual, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 80.º.

O Professor Francisco Paes Marques, por outro lado, vem considerar a inadmissibilidade da figura do litisconsórcio necessário passivo, como figura enquadradora da relação Administração/contrainteressado, apresentando uma multiplicidade de argumentos:

Primeiramente, o Professor salienta que neste suposto litisconsórcio necessário, os dois sujeitos que se encontram no lado passivo, têm uma natureza bastante dessemelhante, dado que a entidade demanda é sempre um sujeito titular de poder público, normalmente a Administração. Quanto a este aspeto, reforça a problemática suscitada anteriormente, no sentido do objeto do processo estar centrado no exercício ou na omissão do exercício de competências jurídico-públicas da entidade autora do ato e, por conseguinte, “a conduta processual que a Administração vai adotar no processo, possui uma dimensão e um alcance incomparavelmente maiores que os poderes reconhecidos aos contrainteressados”.

De facto, o que se evidencia é que longe de se verificar uma identidade entre partes, existe antes uma “assimetria funcional estruturante no lado passivo da relação processual administrativa”, que se deve essencialmente ao estatuto que a Administração detém no processo que difere significativamente das outras partes processuais, uma vez que possui especiais prerrogativas e, correlativamente, certos ónus e especiais deveres inerentes à sua condição de entidade demandada, ou seja, “especificidades próprias decorrentes da conformação da relação jurídica administrativa material”. O problema suscitado pelo Professor é exatamente perceber se, pelo facto dos contrainteressados terem um interesse idêntico à entidade demandada, passam a beneficiar das especiais prerrogativas que são atribuídas à Administração e, do lado oposto, se podem ser prejudicados pelo correlativos “especiais ónus, deveres e encargos que oneram a Administração”.

Em segundo lugar, como afirma o Professor, se esta figura fosse aplicável, nestes termos, tal significaria que “a Administração ficaria tolhida quanto ao exercício de certos poderes processuais na pendência do processo, porquanto o regime do litisconsórcio necessário implica que a eficácia de certos atos processuais só seja adquirida quando praticados por todos os litisconsortes.” Aqui pode apontar-se o facto de que “a aplicação do regime do litisconsórcio necessário levaria a que a Administração não pudesse celebrar qualquer transação com o autor nem sequer proceder à revogação ou anulação do ato impugnado, dado que, nos termos do n.º 2 do art. 288.º do Código de Processo Civil (CPC), a confissão, a desistência ou a transação de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas.”

Deste modo, ainda que o autor proponha a ação não só contra a parte demandada, mas também contra os contrainteressados, quer seja no âmbito dos processos impugnatórios, quer seja âmbito nos processos de condenação à prática de um ato administrativo, o facto é que estes últimos não são partes na relação material controvertida. Assim sendo, na perspetiva do Professor Paes Marques, não podemos admitir que estes sujeitos façam parte de um litisconsórcio necessário, uma vez que esta é “uma figura que se destina a assegurar a unidade do caso julgado em face da existência de uma pluralidade de sujeitos que são titulares da relação material controvertida”. Nestes termos, se os contrainteressados não fazem parte da relação material controvertida, logo também não fazem parte do litígio, e, consequentemente a sua posição não está contida no objeto do processo, “pelo que a sentença é insuscetível de sobre as suas esferas jurídicas incidir, o que, afinal, torna a figura do litisconsórcio, neste contexto, totalmente desajustada”.

Acaba por se concluir que a figura do litisconsórcio necessário passivo não é aplicável à ligação processual que se verifica entre a Administração e os contrainteressados, quer por uma razão dogmática, ou de natureza da relação jurídica material, quer por uma razão prática ou de regime.

4. Quem pode ser considerado um contrainteressado: Análise de um caso concreto.

Tendo sido efetuada uma análise geral à figura dos contrainteressados, bem como algumas problemáticas que própria figura pode trazer à colação, cumpre agora determinar, socorrendo-me de algumas decisões administrativas, bem como de posições doutrinárias, quem deve, efetivamente, ser demandado como contrainteressado.

Nos pontos anteriores ficou definida uma primeira posição que surge da interpretação mais literal dos preceitos legais: referi que constituem contrainteressados e, portanto, devem ser demandados, aqueles que sejam titulares de interesses contrapostos aos do autor (Artigo 10º, nº1, in fine, CPTA), tanto em processos de impugnação de atos administrativos (Artigo 57º), como em processos de condenação à prática de atos administrativos (Artigo 68º, nº2).

Porém, analisando o Acórdão do STA de 12/11/2015, proc. 01018/15, no contexto de uma ação administrativa de contencioso pré-contratual, que tem como escopo a anulação da decisão da Câmara Municipal de Mogadouro, vamos poder observar várias posições relativas a quem pode deve ser inserido neste universo dos contrainteressados.

No caso em apreço, a Réu - Câmara Municipal de Mogadouro - adjudicou uma empreitada de obra pública à sociedade B, sendo que a sociedade A, pediu a anulação desta decisão no TAF de Mirandela, tendo a mesma sido julgada procedente, anulando-se não só o ato de adjudicação, mas também o contrato que fora celebrado na sua sequência, além do mais, na petição inicial, a Autora indicou como contrainteressado apenas a adjudicatária.

C, uma das oponentes ao referido concurso, invocando o disposto nos artigos 154º e 155º do CPTA, interpôs recurso de revisão dessa sentença, alegando não ter sido citada para intervir como contrainteressado. Não havendo o TAF concedido provimento ao recurso, a sociedade C recorreu dessa decisão para o TCA Norte que, além de conceder provimento ao recurso, declarou o processado nulo a partir da petição inicial. Do referido Acórdão resulta o presente recurso, interposto pela autora A.

Deste modo, como já foi analisado anteriormente, resulta do artigo 57º do CPTA, que são obrigatoriamente demandados, a par da entidade do ato impugnado, neste caso a Câmara Municipal - entidade adjudicante -, os titulares de interesses contrapostos aos do autor (Artigo 10º, nº1, in fine), desde que esteja verificado um dos pressupostos retratados no artigo 57º e que já foram previamente analisados.

Neste caso, perante a interpretação do conceito de contrainteressado, o STA foi levado a concluir que apenas o adjudicatário – ou seja, o titular da proposta classificada em 1º lugar e que foi objeto da decisão de adjudicação, correspondente à entidade com quem a entidade adjudicante irá celebrar o contrato – deve ser qualificado como contrainteressado, exatamente porque só este “tem um interesse convergente com o interesse da entidade demandada”. Esta posição encontra respaldo na doutrina, nomeadamente através do Professor Vieira Andrade que vem justificar que apenas o adjudicatário teria, por um lado, interesse em manter a Ordem Jurídica intocada, isto é, só ele teria um interesse pessoal e direto em que não se desse provimento à ação e, por outro lado, só ele seria prejudicado na eventualidade de procedência da ação interposta pelo autor, exatamente porque veria frustrada a adjudicação da obra.

Em sentido inverso, as remanescentes propostas e, neste âmbito, inclui-se a posição de C, que intentou o recurso de revisão da sentença, alegando ser parte contrainteressada, seriam na verdade “co-interessados” do autor, isto é teriam interesses convergentes com esta parte (interesse em que se dê provimento ao pedido do autor), dado que, na eventualidade da anulação da adjudicação, estas entidades beneficiariam, potencialmente, uma vez que podiam ficar qualificadas numa posição superior, num ulterior procedimento administrativo.

Ora, tendo esta posição por base, importa refletir se podia C (uma das concorrentes e com a sua proposta classificada em quarto lugar), ser entendida como parte contrainteressada nesta ação intentada por A (concorrente classificado em sexto lugar) contra a Câmara Municipal, ou seja, se, contrariamente ao que foi decidido pelo STA, além do adjudicatário podem intervir no processo como contrainteressados outras entidades que se sujeitaram a concurso.

Para responder a este problema, devemos denotar que o STA começa por inferir que “a questão central sub judice versa sobre a definição de contrainteressados na ação administrativa especial de impugnação de atos administrativos.” Efetivamente, esta afirmação é seriamente pertinente, uma vez que interpretações diferentes ao conceito de contrainteressado, levam a diferentes soluções, originadas, como refere o STA por “um lapso na definição de contrainteressados, tanto na 1.ª como na 2.ª instância”.

4.1 TAF de Mirandela.

A posição adotada pelo TAF de Mirandela, parece admitir que todos os concorrentes, independentemente da ordem em que tivessem ficado qualificados no concurso, poderiam ser consagrados como contrainteressados. Esta posição amplamente abrangente é desconsiderada pelo STA, com a justificação de que há uma confusão da noção de contrainteressado “por excesso de zelo”. Efetivamente, nos termos do artigo 57º do CPTA, são contrainteressados aqueles “a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado”, ou seja, as pessoas interessadas em que o litígio seja resolvido a favor da entidade autora do ato impugnado, pois são estes que têm interesses convergentes com esta entidade, no sentido em que se houver provimento da ação de impugnação, o contrainteressado ficará, ele próprio, numa posição desfavorável relativamente àquela que possui.

Deste modo, o STA conclui que só existe um concorrente que estaria nesta posição - o adjudicatário -, pois só a ele o provimento da ação poderia prejudicar. Contrariamente, todos os outros concorrentes têm interesses convergentes com o autor da ação de impugnação, uma vez que se abre uma nova possibilidade de verem as suas propostas ocupar o lugar cimeiro. Por outro lado, na vertente negativa, não se conjuga, como é que, por exemplo, o último qualificado, pode ser prejudicado ou ter interesse legítimo na manutenção do ato impugnado. Nestes termos, o STA conclui que “na verdade, é que tanto o 2° como o 23° classificados, não ficam prejudicados pela anulação do ato impugnado, nem têm interesse na manutenção do ato impugnado.”

A par destas interpretações jurisprudenciais, a própria doutrina tem vindo a pronunciar-se sobre a determinação do universo que consubstancia a legitimidade passiva aos contrainteressados. Neste sentido e, de certo modo enquadrando-se nesta perspetiva, menos apegada ao elemento literal, é a posição do Professor Mário Aroso de Almeida que, apesar de inferir que se deve reconhecer os contrainteressados como aqueles a quem é possível de identificar à partida como titulares de interesses presumivelmente contrários aos do autor circunscrevendo-se, deste modo, a quem seja titular de verdadeiras situações subjetivas cuja a procedência da ação possa pôr em causa, o Professor acaba por mencionar que, apesar do elemento literal, “cumpre advertir para o facto de que, na prática, o universo dos contrainteressados é mais amplo, estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem ver a respetiva situação jurídica definida pelo ato administrativo, têm direito de não ser deixados à margem do processo em que se discute a questão em subsistência ou da introdução na ordem jurídica do ato que lhes diz respeito”, pelo que, daqui, não decorre necessariamente um interesse contraposto ao do autor na ação.

Aliás, o Professor referindo-se a um exemplo semelhante ao que resulta da situação do caso em apreço, refere que “todos devem figurar como contrainteressados, pois é a questão da subsistência da respetiva graduação no concurso que está em discussão”, acabando por concluir que “(…) por isso não deixam de ser contrainteressados, num sentido mais amplo do que aquele que decorre do teor literal do artigo 57º, que assenta na titularidade de interesses possivelmente ou potencialmente contrapostos aos do autor, porque fundados em situações jurídicas subjetivas que serão afetadas pela eventual procedência da ação”.

4.2. TCA Norte.

A segunda orientação, seguida pelo TCA Norte, acaba por ser menos abrangente que a posição sufragada pelo TAF de Mirandela, mas, ainda assim, mais ampla do que a posição que é seguida pelo STA, pelo que podemos considerar que se trata de uma posição intermédia. Em moldes gerais, a jurisprudência que resulta do TCA Norte acaba por considerar que os contrainteressados são, não todos os concorrentes (por oposição ao TAF Mirandela), mas somente aqueles que ficaram classificados em posição superior ao Autor, isto é, à entidade impugnante do ato.

Em termos práticos e remetendo para o caso concreto: dado que o Autor (A) da ação de impugnação acabou por ter a sua proposta classificada em 6º lugar, qualquer candidato que tivesse a sua proposta melhor qualificada, e, aqui, incluía-se a posição de C (que ficou em 4º lugar) tinha de ser considerado contrainteressado. Ou seja, as 5 propostas classificadas à frente do Autor, tinham de ser citadas no processo, uma vez que têm legitimidade processual de contrainteressado. A justificação quanto a este entendimento é bifurcada: por um lado entende-se que os concorrentes colocados em posição inferior ao impugnante no procedimento, acabam por ter um interesse idêntico ou paralelo ao do impugnante e não oposto, uma vez que sendo só um o candidato que se vai tornar titular da relação jurídica contratual, aquelas propostas que ficaram graduadas após a do impugnante (sendo que a própria posição deste não lhe permite celebrar o contrato), não ficam em pior posição se o ato for anulado, pois, mesmo que fosse, nunca veriam a sua proposta ocupar a posição cimeira, a não ser que o ato fosse anulado na totalidade. De qualquer modo, como determinou o TCA Norte “a discussão centrar-se-á, em exclusivo, no mérito relativo das propostas posicionadas acima da proposta do impugnante”, exatamente porque são estes que podem vir a ser preteridos em detrimento do autor na sequência da sentença, porque, por exemplo, nos termos do artigo 86º, nº4, do CPP, em caso de caducidade, existe o consequente dever de adjudicar a proposta do concorrente posicionado em segundo lugar. Neste sentido, é possível defender que aqueles que ficaram colocados à frente do Autor, têm um interesse legítimo na manutenção do ato impugnado e, portanto, podem ser considerados como contrainteressados, que é a posição que já asseguraram no concurso e uma eventual requalificação podia ser, nestes termos, prejudicial para os mesmos.

O Professor Paulo Otero, quanto ao problema da determinação dos contrainteressados perante a impugnação contenciosa de um ato administrativo praticado na sequência de um procedimento concursal que envolva uma lista hierarquizada, refere que a solução se encontra na base da aplicação de três critérios: primeiramente, “todos os candidatos para quem o ato recorrido assume a natureza de ato constitutivo de direitos ou interesses legalmente protegidos têm de se considerar contrainteressados perante a impugnação contenciosa do ato que é fonte de uma tal situação jurídica subjetiva de vantagem”. Depois, um outro critério relacionado com a “alteração do escalonamento hierárquico ou da posição relativa dos diversos candidatos” que possa resultar da eventual sentença, referindo o Professor que se deve considerar diretamente atingido “ o candidato cuja posição na lista classificativa seja tal que a anulação do ato que a homologa, desencadeando nova graduação, possa resultar na atribuição de uma posição inferior à que inicialmente detinha com relação ao recorrente”, pelo que daqui se extrai que só aqueles que ocupam um lugar superior ao recorrente na lista classificativa devem ser chamados ao processo como contrainteressados, posição que é coincidente com o TCA Norte. Por fim, refere-se a um critério nos termos do qual “desde que o recorrente tenha na sua petição configurado a lide em termos de envolver todos os concorrentes ou candidatos em tal procedimento, deve entender-se que todos eles devem ser chamados ao processo como contrainteressados”.

4.3. Supremo Tribunal Administrativo

Finalmente, a posição que se encontra no extremo oposto, por ser a mais restritiva, é a posição que é adotada pelo STA e que acaba por considerar que apenas o adjudicatário pode ser considerado contrainteressado. Para tal, o douto Tribunal recorre a uma noção de contrainteressado construída não a partir do eventual interesse que alguém pudesse ter em ser parte na ação, mas a partir do prejuízo que ele terá se não for chamado a juízo, o qual estará sempre relacionado com a manutenção ou anulação do ato impugnado que, de certo modo, acaba por coincidir com a interpretação mais literal dos vários preceitos legais já enunciados (Artigo 10º, nº1, Artigo 57º e Artigo 68º, nº2).

De facto, como foi justificado anteriormente, relativamente à posição do TAF de Mirandela, a posição do STA é díspar, no sentido em que se afirma que as restantes propostas, independentemente do grau de classificação, não podem consubstanciar a posição de contrainteressado. Efetivamente, aplicando a parte final do artigo 10º, nº1 conjugada com o artigo 57º, sem ser o adjudicatário que é quem tem um interesse, além de oposto ao do autor, convergente com a Administração, mais nenhum concorrente o tem. Muito pelo contrário, o interesse dos restantes concorrentes seria também o da anulação do ato para que, eventualmente, ainda pudesse alimentar expectativas na futura adjudicação a seu favor.

Relativamente à posição defendida pelo TCA Norte, o STA concede razão no sentido em que, “à exceção da concorrente classificada em 1.º lugar, a adjudicatária, todos os restantes concorrentes tinham interesse na anulação ato de adjudicação uma vez que, sendo o ato anulado na totalidade, abre-se nova possibilidade de verem as suas propostas ocupar o lugar cimeiro” e, por essa razão, serem os beneficiários da celebração do desejado contrato. Não obstante, acabam por divergir, no sentido em que consideram que o TCA Norte, erroneamente, restringiu os efeitos deste entendimento aos concorrentes que foram classificados em melhor posição do que a obtida pela Autora da ação, afirmando que
a anulação do ato impugnado só acarretará prejuízo para a entidade que praticou o ato e o adjudicatário e isto porque, atenta essa anulação, “aquela terá de refazer o processo administrativo e praticar novo ato não inquinado pela ilegalidade que determinou a anulação do anterior e este ver-se-á afastado da posição de vantagem em que se encontrava colocado.”

Os restantes concorrentes - do segundo ao último classificado – “irão beneficiar do ato anulatório na medida em que, por força dessa anulação, será refeito o processo administrativo e praticado um novo ato classificatório que, colocando um deles na primeira posição, o fará beneficiário do contrato. Daí que o interesse do impugnante na anulação do ato seja convergente com o interesse de todos os outros concorrentes não posicionados no 1.º lugar.”

5. Conclusão.

Após analisar estas diferentes posições jurisprudenciais, bem como da própria doutrina, é possível conceber, a priori, a dificuldade do enquadramento prático desta figura dos contrainteressados que fica dependente da própria interpretação que se faça dos conceitos legais que a configuram. Não obstante, numa nota pessoal e direcionada para o caso abordado, isto é, a impugnação contenciosa de um ato administrativo praticado na sequência de um procedimento concursal, tendo a situar-me na posição intermédia, como defendida pelo TCA Norte.

Isto porque, quanto à primeira solução de resolução que consiste em atribuir a todos os concorrentes a posição de contrainteressado, esta não parece de colher. Efetivamente, é difícil de conceber que à exceção da adjudicatária, qualquer outro concorrente seja direta ou indiretamente prejudicado pela procedência da ação impugnatória. Muito pelo contrário, a procedência da anulação do ato adjudicatório e a abertura de um novo, possibilitará a todos os concorrentes ficarem classificados na posição cimeira, e, portanto, eventualmente vencer o concurso. De facto, o contrainteressado não deduz nenhum pedido, defende a posição do réu, pois os seus interesses são iguais, pelo menos convergentes no sentido do processo, pelo que não pode figurar nesta posição, nenhum dos remanescentes concorrentes. Ou seja, estando a qualidade de contrainteressado intimamente relacionada ao prejuízo que pode advir da procedência da ação impugnatória, para aqueles que, de algum modo, tiveram conexão com a relação material controvertida e que só podem beneficiar da anulação do ato impugnado, leva-me, forçosamente, a concluir que não podem, neste caso, ser considerados contrainteressados.

Quanto à posição que é seguida pelo TCA Norte, por sua vez, pode argumentar-se, nos termos do artigo 86º, nº4 CCP que, em caso de caducidade da adjudicação, existe o consequente dever de adjudicar a proposta do concorrente posicionado em segundo lugar, pelo que seria um argumento favorável e determinante, para se afirmar que as entidades com propostas classificadas à frente das do Autor poderiam ser concebidas como contrainteressados, dado que o provimento da impugnação do ato retirar-lhes-ia uma posição assegurada e um novo concurso podia prejudicar a sua posição na classificação. Além disso, se atendermos ao Artigo 103º, nº1 - A do CPTA, que refere que “as ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação (…) fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato”. Isto vai significar que a posição que foi adquirida pelas propostas, mesmo aquelas classificadas à frente do Autor, vão ser reclassificadas, pelo que o argumento que as partes classificadas à frente do Autor têm um interesse que é a reserva de um lugar que já obtiveram, ganha novamente premência, dado que num novo concurso podem ficar classificados numa posição pior do aquela que já tinham assegurado, de facto, só o concorrente classificado em último lugar, não pode descer mais na tabela classificativa.

Este argumento parece expor a fragilidade da posição do STA, no sentido em que, por um lado, efetivamente os titulares das propostas graduadas antes do impugnante podem, eventualmente, vir a beneficiar do ato de impugnação, o que não obsta a que, por outro lado, aqueles que ficaram classificados mais à frente, num novo concurso, vejam a sua posição recuar na classificação. Ainda assim, a conclusão de que a impugnação do ato implica um novo concurso remove este óbice, no sentido em que, na relação material controvertida em causa, aqueles que ficaram classificados à frente do Autor têm um verdadeiro interesse porque, independentemente do provimento da ação, nunca são capazes de assegurar a mesma posição, o que é potencialmente prejudicial e, neste sentido, confere a estas partes a posição de contrainteressado, dado o seu interesse na manutenção do ato.

Tiago Alexandre dos Santos Andrade Caleça
Subturma 3 | 4º Ano
Nº. 58478

[1] Pág 286 - O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise.

Bibliografia:

O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise | PEREIRA DA SILVA, Vasco.

Manual de Processo Administrativo | AROSO ALMEIDA, Mário.

Justiça Administrativa | Prof. Vieira Andrade.

Os contrainteressados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal | OTERO, Paulo.

O estudo processual dos contrainteressados nas ações impugnatórias e de condenação à prática de ato administrativo | PAES MARQUES, Francisco 

Acórdão Supremo Tribunal Administrativo | http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/44a075e8a3768b4080257eff0054ecb3?OpenDocument&ExpandSection=1

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