A condenação à emissão de normas regulamentares
Neste comentário, iremos explorar o mecanismo da declaração
de ilegalidade por omissão, introduzido na reforma de 2002/2004 no artigo 77.º
do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA). Este
mecanismo é um modo de reação contra as omissões ilegais de emissão de
regulamentos, através de uma sentença cujo efeito é dar conhecimento à entidade
competente dessa mesma omissão e conceder-lhe um prazo para produzir a
regulamentação necessária. Esta figura teve a sua origem numa proposta do
professor Paulo Otero e a sua existência é aplaudida e defendida por vários
autores, como é o caso do professor Vasco Pereira da Silva.
Esta figura e a maneira como foi formulada evidencia a sua
clara inspiração no instituto da fiscalização da constitucionalidade por
omissão, consagrado no artigo 283.º da Constituição da República Portuguesa
(doravante CRP), a que a jurisprudência constitucional recorre para assegurar a
exequibilidade das normas constitucionais. No entanto, no âmbito da jurisdição
administrativa esta figura é apenas aplicável na omissão de regulamentos que se
provem serem necessários à execução de preceitos concretos das leis
administrativas (artigo 137.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo,
doravante CPA). Além disso, outra diferença muito importante entre estas
figuras está no facto de que na fiscalização da constitucionalidade da omissão apenas
se realiza uma recomendação ou uma comunicação ao órgão legislativo competente
de que essas normas estão em falta (artigo 283.º, n.º 2 da CRP), enquanto que
no âmbito da condenação à emissão de regulamentos é realizada uma efetiva sentença
condenatória da Administração (artigo 77.º, n.º 1 do CPTA).
Antes da reforma de 2015, colocava-se a questão de saber se
este mecanismo era uma verdadeira condenação à emissão de normas
regulamentares, uma vez que o legislador utilizou a expressão ambígua
“declaração de ilegalidade por omissão” na epígrafe do artigo 77.º.
Perguntava-se, então, se esta sentença tinha uma eficácia meramente declarativa
(ou seja, se estava limitada a dar conhecimento da existência da ilegalidade)
ou se ela também tinha efeitos cominatórios (uma vez que esta previa a fixação
de um prazo para a adoção das medidas). No entanto, a revisão mencionada veio
esclarecer, tanto na epígrafe como no próprio corpo do artigo, que estávamos
perante uma verdadeira condenação, ao utilizar as expressões “condenação à
emissão de normas” e “o tribunal condena a entidade competente”, já não
suscitando esta questão.
Algo de interessante a referir é que o artigo 137.º, n.º 2
do CPA oferece às partes legítimas deste processo a possibilidade de
requererem, através de reclamação ou recurso, a emissão do regulamento devido
quando se tenha passado o prazo devido. No entanto, devemos esclarecer que esta
via não prejudica o recurso à tutela jurisdicional, que lhes está sempre
disponível.
Nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do CPTA, o pedido de
apreciação da ilegalidade por omissão tem por base um dever de regulamentar que
foi omitido, quer seja de forma expressa ou implícita. O professor Vasco Pereira
da Silva concretiza o objeto deste processo, dando como exemplos a emissão de
regulamentos de execução, que visam completar e desenvolver uma concreta lei, e
os regulamentos autónomos e independentes, que não concretizem devidamente a
lei de habilitação que têm por base (se bem que é verdade que a Administração
possui uma maior margem de conformação normativa nestes casos, deve-se ter em
conta que a sua emissão corresponde a à concretização de um dever legal). Ou
seja, não está em causa as pretensões típicas de condenação à prática de atos
administrativos, em que os poderes de pronúncia do juiz são objeto de regulação
própria, mas de uma verdadeira condenação da Administração à adoção de atos
jurídicos para restabelecer um direito ou interesse violado. Além disso, de
acordo com a gravidade da ilegalidade da omissão, o tribunal pode, conforme nos
dispõe os artigos 3.º, n.º 2 e 95.º, n.º 4 do CPTA, impor uma sanção pecuniária
compulsória além da fixação do prazo dentro do qual a omissão deve ser suprida.
Além da alegação da omissão ilegal da emissão de
regulamentos, o interessado deve também alegar um “prejuízo”, que nada mais é
do que uma posição jurídica subjetiva, uma vez que não é aqui estabelecido
nenhum regime específico, e o artigo 268.º, n.º 5 da CRP (que consagra o
princípio da tutela jurisdicional efetiva e em que se reconhecem que os
indivíduos são titulares de direitos fundamentais) nos guia nesse sentido.
Ainda segundo o artigo 77.º, n.º 1 do CPTA, é-nos referido
que se consideram como partes legítimas “o Ministério Público, as demais
pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º,
os presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas omitidas pelos
respetivos órgãos, e quem alegue um prejuízo diretamente resultante da situação
de omissão”. Segundo o professor Vasco Pereira da Silva, esta norma funciona
como uma “remissão” para as regras gerais de legitimidade da ação para a defesa
de direitos, da ação pública e da ação popular, não se estabelecendo um regime
específico nesta matéria.
Relativamente ao prazo para que “a omissão seja suprida”, o
artigo 77.º do CPTA não nos oferece um critério. Assim sendo, devemos atender
ao artigo 137.º, n.º 1 do CPA, que estabelece o prazo regra de 90 dias, no
silêncio da lei. O incumprimento deste prazo constitui um ato de desobediência
à sentença, o que, nos termos dos artigos 164.º, n.º 4, alínea d), 168.º e
169.º do CPTA, permite aos interessados desencadear os meios executivos
competentes e estabelece a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória.
Antes da reforma de 2015, não era isto que se sucedia: apenas se determinava
que o prazo para a emanação da norma não poderia ser inferior a seis meses.
Acrescente-se que, no entender do professor Mário Aroso de
Almeida, o artigo 95.º, n.º 5 do CPTA (que permite aos tribunais, no âmbito das
ações de condenação a atos jurídicos à Administração, determinar o conteúdo do
ato jurídico ou do comportamento a adotar) não é aplicável a esta ação de
condenação. Isto se sucede porque este preceito tem em vista as ações em que o
tribunal seja chamado a determinar o conteúdo dos atos jurídicos praticar a fim
de remover as consequências da sua atuação ilegal e proceder ao
restabelecimento da situação jurídica ofendida. Este professor também utiliza
um argumento sistemático e outro histórico para fortalecer a sua opinião. O
argumento sistemático demonstra que a sede própria para definir os poderes de
pronúncia do juiz nas ações de condenação à emissão de regulamentos surge somente
no artigo 77.º, n.º 2 do CPTA, e não no artigo 95.º, n.º 5, uma vez que não é
no capítulo III do Título II (que se limita a regular a marcha do processo),
mas sim no capítulo II (que indica os tipos de pretensões que podem ser
apresentadas aos tribunais administrativos), que se estabelece os poderes de
pronúncia do juiz. Relativamente ao argumento histórico, este professor aponta
para a origem deste preceito (1) e demonstra que este tem apenas em vista as
pretensões dirigidas a obter a condenação da Administração à adoção de atos
jurídicos e operações materiais para restabelecer direitos ou interesses
violados, e não a emissão de normas regulamentares.
Notas de rodapé
(1) Com a revisão de 2015, o artigo 95, n.º 5 do CPTA perdeu a referência de que tinha em vista as situações em que houve a cumulação de um pedido de condenação da Administração “à adoção dos atos e operações necessárias para reconstituir a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado” juntamente com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade de um ato. O objetivo desta alteração foi estender a aplicabilidade deste regime às pretensões de restabelecimento de lesões a situações jurídicas dos indivíduos que resultassem de atuações desenvolvidas numa via de facto, sem um ato jurídico que as fundamentasse.
Comentário realizado pela aluna Mariana Monteiro, n.º 58649
Bibliografia
·
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça
Administrativa (Lições), Almedina, 2020.
·
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as ações no novo processo
administrativo, Almedina, 2016.
·
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, 2020.
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