Arbitragem Administrativa
Arbitragem Administrativa – um Mundo Paralelo e potencial solução do Constrangimento dos Tribunais
Administrativos[1]
É sabido que o “conflito” não é um fenómeno raro ou uma
espécie em vias de extinção, muito pelo contrário. É uma forma de demonstrar ou
confrontar posições naturalmente distintas. Além do mais, os conflitos podem
determinar-se em grande escala, ficando dependentes de métodos de assistência
para se solucionarem.
Historicamente, o recurso a auxilio de terceiros para as
partes conseguirem chegar à solução dos seus conflitos era concretizado por via
de conselheiros e mediadores, escolhidos entre os demais sábios ou entre chefes
das tribos da sociedade, passando a consistir numa forma mais autocrática, onde
o fator “sabedoria” ditava a solução para o problema. Por exemplo, no período
romano, o termo judex significava jurado: uma pessoa que era chamada à colação
para julgar um determinado caso, funcionando como uma espécie de árbitro legal.
Podendo-se entender que nesta época concebeu-se o “embrião” da arbitragem que,
inclusive foi prévia à própria organização judicial que se tornou tão
preponderante no mundo moderno.
Atualmente, em Portugal, observa-se uma necessidade cada vez
maior de recorrer a meios “alternativos”, nomeadamente devido à existência de
um constrangimento dos processos de tribunais administrativos, resultante do
extenso caudal de processos que vão parar às mãos de um número reduzido de
juízes, havendo falta de meios administrativos para gerir tal congestionamento.
Repare-se que, o processo administrativo não ocorre meramente
nos tribunais administrativos, podendo igualmente existir nos tribunais
arbitrais, estando consagrado expressamente na Constituição, por via do artigos
209.º/n.º2. Além disso, é entendimento pacifico na doutrina, a possibilidade de
criação destes últimos para dirimir litígios de Direito Administrativo.
No que toca à solução da arbitragem, nas palavras do
professor João Caupers, trata-se de uma “técnica de solução de conflitos
hetero-compositiva[2]”, ou seja, exige-se pelo
menos um terceiro, podendo ser convencional (quando se exige um acordo entre as
partes); formalizada (no sentido de existir a escolha de procedimentos pré-determinados
que vão ser seguidos pelos árbitros e pelas partes) e, por fim ainda possui a modalidade
de “quási-judicial” (que garante uma solução obrigatória para as partes, porque
os árbitros são juízes, não obstante não fazerem parte da justiça do Estado).
A Constituição da República Portuguesa estabelece que, por um
lado a arbitragem é um meio de resolver conflitos jurídicos e, por outro lado,
consagra uma natureza jurisdicional a este tipo de tribunais, por via do seu
artigo 209.º/n.º2 e 202.º/n.º4 da CRP. Mas note-se que, o facto de o Estado
admitir a existência de arbitragem não significa que esteja a admitir o
afastamento em absoluto e definitivo da solução do litigio por tribunais
estaduais, uma vez que, por um lado se trata de uma atividade jurisdicional e,
por outro lado, seria constitucionalmente ilegítimo uma solução que colocasse
em cheque os tribunais estaduais “completa e definitivamente à margem do
funcionamento em concreto da instituição arbitral [3]”.
Portanto, apesar de existir tolerância da privação do poder
de julgar dos juízes administrativos em favor dos árbitros, não significa que o
Estado aceite “delegar” o poder de execução da decisão. Aliás, até se pode
considerar a existência de um princípio da legalidade da arbitragem, no sentido
em que é a própria lei que prevê e enquadra juridicamente a arbitragem
administrativa, tendo a função de definir as linhas organizativas e funcionais
dos tribunais arbitrais e, inclusive regras de processo arbitral, valor e a força jurídica da decisão.
Assim, pode-se concluir um primeiro aspeto de que, não existe
incompatibilidade entre a justiça e a autodeterminação privada, porque a
“justiça” não é o monopólio do Estado, nem a Constituição prevê tal ideia, uma
vez que, conjugando os artigo 209.º da CRP com o artigo 202.º/n.º1 da CRP,
recusa-se a existência de um “sistema de exclusividade da justiça pública[4]”, assumindo-se a
possibilidade de os conflitos de caráter judicial poderem ser igualmente
resolvidos através de soluções institucionais que atribuem a legitimidade para
decidir a tribunais sem natureza permanente constituídos ad hoc, por via de
acordo ou convenção de arbitragem, sendo a sua deliberação vinculativa para as
partes. Inclusive o próprio Tribunal Constitucional entende que a arbitragem
constitui um modo legitimo de composição de litígios, sendo aliás um órgão que
“(…) se constitui precisamente para exercer a função jurisdicional”[5].
O artigo 180.º do CPTA estabelece um elenco de matérias em
que os tribunais arbitrais podem decidir, nomeadamente matéria contratual,
incluindo a anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos
relativos à própria execução (artigo 180.º/n.º1, a); casos de responsabilidade
civil extracontratual o que abrange também o direito de regresso (artigo
180.º/n.º1, b); questões atinentes à
própria validade dos atos administrativos (artigo 180.º/n.º1, c) e, por fim, casos
de relações jurídicas de emprego público, desde que não estejam em causa
direitos indisponíveis e quando não resulte de acidente de trabalho ou de
doença profissional (artigo 180.º/n.º1, d).
Mas, como já foi referido supra acima, a Administração
estabelece barreiras para controlar tal poder jurisdicional e uma das
manifestações nítidas desses limites são as matérias proibidas de serem
decididas em processo de arbitragem, por via do artigo 185.º do CPTA cuja
epígrafe traduz uma ideia clara do que regula – “limites da arbitragem”-
onde se estabelece que não podem ser tratadas as matérias relativas à
responsabilidade civil por prejuízos resultantes do exercício da função
política e legislativa ou da função jurisdicional. Além do mais, no seu número
2, no que diga respeito aos litígios sobre questões de legalidade, os árbitros
terão de decidir de forma stricta segundo o direito constituído, “não
podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação
administrativa, nem julgar segundo a equidade”.
Como afirma o professor Rui Medeiros, “num Estado de
Direito os tribunais arbitrais fazem sentido mesmo em relação aos litígios
jurídico-administrativos” [6]. Assim sendo, por exemplo
pode estar subjacente um interesse do Estado, nomeadamente em “descongestionar
os seus próprios tribunais”. No entanto, isso não significa que se possa
identificar um direito fundamental à arbitragem administrativa, uma vez que o
legislador português ao possibilitar o recurso à arbitragem administrativa,
exige que haja uma ponderação complexa acerca do espaço que deve ser
eventualmente deixado à autonomia pública neste domínio e, igualmente uma
reflexão sobre o papel que se deve reservar aos tribunais estaduais. No fundo,
não se poderá olhar apenas para as vantagens que a própria arbitragem
administrativa poderá trazer, mas igualmente o facto de, muitas vezes suscitar-se
problemas como a “menor garantia de independência dos julgadores, da falta
de coesão e coerência entre as decisões ou até um défice de accoutanbility [7]”.
E, por último, no que diz respeito a potenciais vantagens
resultantes da utilização da arbitragem administrativa como solução ao
constrangimento dos processos administrativos estaduais refere-se o
facto de estabelecer um processo muito mais célere, uma vez que existe prazo
máximo muito mais curto do que nos tribunais administrativos e fiscais, por via
do artigo 43.º e ss da Lei n.º63/2011, de 14 de dezembro – LAV, Lei da
Arbitragem Voluntária. Por outro lado, os litígios podem ser resolvidos de
forma muito mais barata e mais especializada, devido à especialização dos
árbitros do Centro de Arbitragem Administrativa e, para além de termos
igualmente um processo mais simples.
Não obstante referir vantagens, é natural que existam autores
que consideram que a arbitragem é inadmissível porque privatiza a justiça,
considerando-a como um “mundo secreto[8]”. Outros críticos ainda
consideram que a função jurisdicional deve ser o monopólio do Estado de Direito
democrático e não de uma atividade económica privada no “âmbito de um
mercado concorrência (de arbitragem)”.
A meu ver, considero que as vantagens compensam as
desvantagens, na medida em que estamos perante uma situação em que o
constrangimento de processos tornou-se de tal modo agressivo devido às inúmeras
relações que a Administração Pública cria com diferentes sujeitos, quer
singulares, quer coletivos, quer públicos, quer privados, que se torna indispensável o recurso arbitragem para, pelo menos suavizar a situação e para
existir, de certa forma, uma resposta mais eficaz da justiça às situações quotidianas
que se colocam. Salientando ainda outra ideia de que, a arbitragem
administrativa trata-se de uma “justiça alternativa” que poderá
eventualmente beneficiar o próprio sistema administrativo. E que a função dos
árbitros seria dirimir os litígios dentro do quadro normativo aplicável ao
caso, e ir-se-ia decidir a questão nos mesmos termos em que poderia fazer um
tribunal estadual, não obstante com as devidas limitações que resultam do
caráter injuntivo das normas a que se deve obedecer a atividade administrativa.
Ana Rita Nisa Rato
N.º de aluno: 58296
[1] Isabel Celeste M. Fonseca,“Arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?”, in A Arbitragem Administrativa e Tributária – problemas e desafios, Coimbra: Almedina, 2012, p.163.
[2] João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10.ª edição, Âncora
Editora, p.544.
[3] Rui Medeiros, Arbitragem Administrativa e Constituição in Estudos em Homenagem a
Agostinho Pereira de Miranda, Coimbra 2019, pp. 447-463.
[4] Pedro
Gonçalves, Entidades Privadas com poderes públicos, Coimbra, Almedina, 2005,
pp. 561.
[5] Acórdão
TC, n.º230/86.
[6] Rui
Medeiros, Arbitragem Administrativa e Constituição in Estudos em Homenagem a
Agostinho Pereira de Miranda, Coimbra 2019, pp. 447-463.
[7] Sérvulo
Correia, “A arbitragem dos litígios entre os particulares e a Administração
Pública sobre situações regidas pelos Direito Administrativo, in Estudos em
memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra 2014, pp. 697 e ss.
[8] Isabel
Celeste M. Fonseca, “A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?”,
in A Arbitragem administrativa e tributária – problemas e desafios, Coimbra:
Almedina, 2012, p.163.
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