Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de setembro de 2020
Introdução
Neste comentário irei analisar o Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo de 10 de setembro de 2020, da Secção de Contencioso
Administrativo (também chamada de 1.ª Secção). Iremos analisar apenas os dois
primeiros pontos expostos no sumário, relativos à declaração de ilegalidade de
normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto e à
apreciação dos pressupostos processuais no âmbito da intimação para a proteção
de direitos, liberdades e garantias.
Breve enunciação dos factos
O autor e requerente A, intentou uma intimação para a
proteção de direitos, liberdades e garantias contra a Presidência do Conselho
de Ministros, pedindo a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos
circunscritos a si, das normas da Resolução do Conselho de Ministros,
correspondente anexo e quaisquer outras normas análogas que viessem ser
aprovadas em sua consequência (como se sucede com as normas que vêm a renovar o
conteúdo da Resolução) e, ainda, a condenação da Presidência do Conselho de
Ministros no sentido de não impedir este e pessoas que com ele venham a estar
reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião.
A norma em causa proibia ajuntamento de mais de 10 ou 20
pessoas em espaços públicos, o que, segundo o requerente, violava o seu direito
fundamental de organizar e participar em “reuniões de amigos e famílias,
jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques”. Esta norma era, além
disso, de vigência temporal limitada.
A Presidência do Conselho de Ministros apresentou a sua
defesa por exceção e por impugnação, que se fundamentou, essencialmente, em
cinco argumentos. Em primeiro lugar, os tribunais administrativos não eram
competentes para julgar da causa por falta de jurisdição, em segundo lugar, a Presidência
do Conselho de Ministros não poderia ser parte passiva uma vez que não tinha legitimidade,
em terceiro lugar, o meio processual escolhido não foi o mais correto, em
quarto lugar, o Supremo Tribunal Administrativo era incompetente hierarquicamente
para decidir do segundo pedido e, em último lugar, sustentou a conformidade
constitucional das normas impugnadas.
Análise crítica
Começando primeiro pela análise da falta ou não de jurisdição
relativamente ao primeiro pedido, o problema que estava em causa foi suscitado
pela maneira que o requerente formulou o pedido. Isto porque o artigo 73.º, n.º
2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) apenas
admite “dois tipos de impugnação de normas: o pedido de declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral e o pedido de declaração de ilegalidade
no caso concreto”, e o requerente pediu “a declaração de inconstitucionalidade,
com efeitos circunscritos a si”. Isto é relevante, porque segundo a
interpretação que a doutrina faz deste último preceito referido, “uma norma
jurídica ou é legal ou não é, e se for considerada ilegal, isso é de tal
maneira grave que não pode deixar de projetar-se na respetiva eficácia, pelo
que, tratando-se de norma geral ou abstrata, tal juízo de ilegalidade (…) deve
valer para todos os destinatários e todas as situações de vida”. A entender-se
em outro sentido, estar-se-ia a colocar em causa os princípios da certeza e da
segurança jurídicas. No entanto, o Tribunal parece desconsiderar esta
problemática, argumentando que não só esta é a única forma de assegurar a
efetividade do artigo 268.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa
(doravante CRP), mas também porque a finalidade do pedido do requerente é
apenas a obtenção da tutela adequada à sua lesão, com fundamento na respetiva
ilegalidade (ilegalidade em sentido amplo, abrangendo a inconstitucionalidade),
com efeitos circunscritos ao caso concreto. Este pedido é perfeitamente
admissível, porque não está em causa a declaração inconstitucionalidade com força
obrigatória geral das normas em causa (a quem compete apenas ao Tribunal
Constitucional, nos termos dos artigos 281.º, ns.º 1 e 2 e 282 da CRP), mas tão
somente a sua desaplicação ao caso concreto. Aliás, o Supremo Tribunal
Administrativo afirma mesmo que “o objeto do processo judicial administrativo é
o controlo dos efeitos diretos e imediatos que a norma (…) produz na esfera
jurídica do lesado, e não um juízo puramente normativo de desvalor
constitucional”. Este argumento do Tribunal faz-nos perfeito sentido,
principalmente se tivermos em conta que o objeto principal do processo não é
apreciação da inconstitucionalidade das normas, mas sim a adoção de medidas que
se revele indispensável para assegurar o exercício do direito fundamental em
causa – afinal, estamos perante um processo para a intimação para a proteção de
direitos, liberdades e garantias, e para esse efeito, veja-se o que consta no
artigo 109.º, n.º 1 do CPTA.
Avançando para a questão da ilegitimidade passiva da Presidência
do Conselho de Ministros, esta alega que quem é parte competente é o Conselho
de Ministros e não a Presidência do Conselho de Ministros (nos termos do artigo
1.º do Regime da Organização e Funcionamento do XXII Governo Constitucional),
uma vez que apenas o Conselho de Ministros é que é considerado um órgão do
Governo, e por isso teria de ser absolvida. Isto é relevante, porque assim
sendo, ela nunca poderia ser parte legítima, e o próprio Tribunal lhe dá razão.
Aliás, os artigos 10.º, n.º 2 e 109.º, n.º 2 do CPTA (são regras sobre a
legitimidade passiva, sendo a primeira de âmbito geral e a segunda no âmbito
das intimações para a proteção de direitos, liberdades e garantias) expõem
exatamente nesse sentido, ao determinarem como critério de parte legítima a sua
presença na relação jurídica administrativa em causa, o que não se sucederia
neste caso. No entanto, esta exceção é descartada a favor da garantia
jurisdicional efetiva do direito fundamental em causa, e achamos que esta foi
uma boa decisão. Isto se sucede porque o processo de intimação para a proteção
de direitos, liberdades e garantias é, por natureza, um processo urgente. Os
artigos 109.º, 110.º e 110.º-A do CPTA são claros nesse sentido, ao usarem
expressões como “célere” e “urgência”, de forma a garantir-se o efeito útil da
decisão que o artigo 111.º do CPTA refere no seu n.º 1. Nesta lógica, não faria
sentido algum dispensar a Presidência do Conselho de Ministros, um órgão do Conselho
de Ministros (este último por sua vez claramente inserido na estrutura da
pessoa coletiva Governo, já que, nos termos do artigo 200.º da CRP, é através
do Conselho de Ministros que o Governo pode exercer as suas competências), com
tem uma clara “íntima relação intersubjetiva institucional”, como menciona o
Tribunal. Iria atrasar-se a tutela jurisdicional efetiva do direito fundamental
do particular a favor de uma diligência processual (a correção da petição), o
que é inaceitável. É para estas situações e muitas outras que o dever de gestão
do processual do Tribunal existe (aliás, no próprio n.º 1 do artigo 7.º-A do CPTA
é referido expressamente que o juiz deve “providenciar pelo seu andamento
célere” e “recusando o que for impertinente ou meramente dilatório”, e os
artigos 110.º e 110.º-A do CPTA apenas vêm concretizar esta ideia no âmbito
especial do processo em causa).
De seguida, é colocada em causa a competência hierárquica do
Supremo Tribunal Administrativo, isto porque, segundo a requerida, o pedido de
condenação teria de ser formulado pelo ministro responsável pela tutela das
forças policiais, e nesse sentido, seria antes competente o Tribunal
Administrativo de Círculo, nos termos do artigo 44.º, n.º 1 do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF). No entanto, o Tribunal
rapidamente desconsiderou esta argumentação, justificando-se pela presença de
uma cumulação de pedidos (invocando, para o efeito, o artigo 21.º, n.º 1 do CPTA)
e, considerando que já era competente para conhecer do primeiro pedido com base
na fundamentação da sua competência que já analisamos anteriormente, este
também poderia reconhecer do segundo pedido. De nada temos a acrescentar a não
ser que a competência hierárquica deste Tribunal se fundamenta no artigo 24.º,
n.º 1, alínea a), iii) do ETAF.
Verificando que nenhuma das exceções da requerida eram
procedentes, o Tribunal avançou para a verificação dos pressupostos da
intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias. Para esse
efeito, considerou o artigo 109.º do CPTA. Segundo o n.º 1, exige-se que a
decisão seja urgente, para evitar a lesão ou a inutilização do direito, que o
pedido se refira à imposição de uma conduta positiva ou negativa à
Administração e que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório
de uma providência cautelar. O Supremo Tribunal Administrativo argumentou que,
como estavam em causa normas com vigência temporal limitada (“a vigência da
norma que proíbe os ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público
termina às 23:59h do dia 14 de setembro de 2020”, segundo o ponto 1 da
Declaração n.º 68-A/2020), e que não bastaria uma mera decisão cautelar, mas
sim uma efetiva decisão de mérito (uma vez que as proibições normativas tinham
eficácia imediata e vêm produzindo efeitos diretamente na esfera pessoal do
requerente), fazia sentido resolver de forma imediata o litígio. Esta decisão
faz-nos sentido, uma vez que as providências cautelares são instrumentais e
provisórias, e não faz sentido usá-la quando se pode, imediatamente, resolver o
litígio por uma decisão de mérito.
Antes de avançar às alegadas inconstitucionalidades, o
Supremo Tribunal Administrativo quis esclarecer se o segundo pedido era, ou não,
inútil. Este segundo pedido era um pedido de “condenação da Presidência do
Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças
policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o requerido
e as pessoas que com ele estejam reunidas de exercer plenamente a sua liberdade
jusfundamental de reunião”. Concordamos com o Tribunal que o reconheceu como
inútil, uma vez que este não só era um pedido respeitante à execução do julgado
do primeiro pedido (e nesse sentido teria os mesmos efeitos que esse, e nesse
sentido não teria autossuficiência), mas também porque seria impraticável,
mesmo se o considerássemos de forma autónoma. Entenda-se: estar-se-ia a
solicitar às forças de polícia e às autoridades públicas a abster-se, em
relação às reuniões que aquele indivíduo convoque ou intervenha, do controlo e
fiscalização exigidas por lei, mesmo que possa estar em causa a violação, ou a
sua suspeita, de quaisquer direitos e bens jurídicos.
Por fim, o Supremo Tribunal Administrativo tomou uma posição
quanto às inconstitucionalidades alegadas.
Começando pela formal ou orgânica, segundo o requerente, a
norma que este queria que lhe fosse desaplicada é uma norma restritiva de
direitos, liberdades e garantias que não teria a densidade normativa nem a
habilitação legal exigidas. Neste sentido, esta violaria o disposto nos artigos
18.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP. O Tribunal não considerou
competente estes argumentos, porque enquadrou estas medidas “num conjunto de
ações judiciais que têm vindo a ser propostas em muitos Estados (…) como reação
às medidas de emergência sanitária adotadas pelas diferentes autoridades
estaduais e de saúde pública na luta contra a pandemia da COVID 19”. Assim
sendo, por um lado, esta medida enquadra-se perfeitamente nos regimes legais de
exceção administrativa, seja em matéria de proteção civil e reação contra
catástrofes, seja em matéria de saúde pública e prevenção de infeções,
invocando para este efeito a Lei de Bases da Proteção Civil (Lei n.º 27/2006,
de 3 de julho) e, ainda, a Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 95/2019, de 4 de
setembro), o que significa que a medida adotada encontrava clara previsão legal
que a fundamentasse; por outro lado, quanto à sua densidade normativa, devíamos
de enquadrar esta medida no quadro de implementação de medidas recomendadas da
Organização Mundial de Saúde, implementadas por nós e por outros Estados no
quadro de uma situação de crise de saúde pública, ou seja, apesar de não haver
acolhimento expresso nesta situação na nossa Lei Fundamental, devemos entender
que esta se integrava num “Estado de Direito de Emergência Sanitária”.
Quanto à inconstitucionalidade material, o requerente alegou
a violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. A requerida, por
sua vez, contestou alegando que a medida não afetava o núcleo essencial do
direito em causa (mas tão somente as suas “franjas”) e que a necessidade desta
medida se justificava pela impossibilidade da gestão da pandemia em casos de
grandes aglomerados e pela dificuldade do rastreamento de casos. O Supremo
Tribunal Administrativo deu inteira razão à requerida. Em primeiro lugar, porque
a medida mostrava-se adequada (a regra do distanciamento social mostra-se a
mais adequada para evitar que as pessoas se decidam aglomerar em ajuntamentos
na via pública, ao mesmo tempo), necessária (na falta de meio “mais benigno e
igualmente apto” de rastreabilidade de casos e das consequências de saúde
pública) e proporcional stricto senso (uma vez que apenas limita o direito
individual apenas na medida do interesse público em causa, que se trata da
saúde pública) e, em segundo lugar, não se verifica a existência de qualquer
discriminação ou diferenciação de tratamento (uma vez que não está em causa um
diferenciação de tratamento do sujeito: o que o requerente alega é que os
critérios adotados na proibição de ajuntamentos de pessoas na vida pública
fosse outro, e como se já viu anteriormente, esse não pode ser o caso).
Por fim, os juízes pronunciaram-se no sentido da improcedência da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, por não se considerar verificada qualquer violação de direitos, liberdades e garantias. Concordo plenamente com a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que não se consegue provar a existência da alegada violação. Além disso, considero que os seus argumentos tenham sido bem formulados, concretizando a melhor maneira os preceitos legais invocados.
Comentário realizado pela aluna Mariana Monteiro, n.º 58649
Bibliografia
·
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça
Administrativa (Lições), Almedina, 2020.
·
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as ações no novo processo
administrativo, Almedina, 2016.
·
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, 2020.
Comentários
Enviar um comentário