O Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual

 O Efeito Suspensivo Automático no Contencioso Pré-Contratual

I. Introdução 

A determinado momento da vida do contencioso pré-contratual urgente nos Tribunais Administrativos, o cenário que se traçava era o da verificação de um enorme défice de tutela jurisdicional dos participantes em procedimentos de contratação pública que viam as suas propostas ser invalidamente rejeitadas, sendo-lhes praticamente impossível obter a reconstituição da situação jurídico-procedimental em que estariam se o ato ilegal (na maioria das vezes o ato de adjudicação) não tivesse sido praticado. 

O Parlamento Europeu e o Conselho, não foram alheios a esta realidade e à crescente necessidade de reforçar a tutela neste âmbito, tendo para tal aprovado e publicado a Diretiva 2007/66/CE (Diretiva que altera as 89/665/CEE e 92/13/CEE). Esta Diretiva veio impor aos Estados-Membros o estabelecimento de um efeito suspensivo automático da decisão de adjudicação, quando esta tenha sido objeto de pedido de impugnação, até que o Tribunal se pronuncie sobre o pedido formulado - assim o diz o considerando 4 da mesma.

Como bem observa Margarida Olazabal Cabral, “a intenção do legislador europeu não é a de simplesmente proteger os lesados por atos de adjudicação ilegais, mas a de garantir, como um valor objetivo a tutelar, a regularidade e transparência da contratação pública, considerada fundamental para a criação de um mercado único” (1).

Será esta mesma a razão que justifica que este mecanismo seja acionado independentemente da vontade do demandante, bastando apenas que este pretenda impugnar o ato de adjudicação.

(1) MARGARIDA OLAZABAL CABRAL, “O contencioso pré-contratual no CPTA revisto – algumas notas”, in AA.VV., Contencioso Pré-Contratual, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, Fevereiro de 2017;

II. A Transposição da Diretiva 

O aditamento, com a revisão de 2015, dos artigos 103º-A e 103º-B ao CPTA teve como objetivo adequar o regime do contencioso pré-contratual urgente português a esta nova exigência europeia.

O 103º-A veio estabelecer, no seu n.º 1, que “a impugnação de atos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado, ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”. Com alguma facilidade se conclui que o legislador nacional tomou a opção autónoma - autonomia que é apontada por Autores como Duarte Rodrigues Silva (1) e Mário Aroso de Almeida (2) - de ir além do imposto pela Diretiva, consagrando também esta suspensão nos casos em que a ação é proposta após decorrido o prazo procedimental de stand still (prazo suspensivo mínimo de dez dias, consagrado no artigo 104º/1 a) do Código dos Contratos Públicos, que deve intermediar o ato de adjudicação e a celebração do contrato) e, inclusivamente, depois de celebrado o contrato a cuja formação o procedimento pré-contratual se destinava, o que veio reforçar consideravelmente a tutela dos participantes em procedimentos de contratação pública.

(1) DUARTE RODRIGUES SILVA, “O levantamento do efeito suspensivo automático no contencioso pré-contratual” in Cadernos Sérvulo de Contencioso e Arbitragem, n.º 01/2016, páginas 8 e 9;

(2) MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª ed;

III. Termo Inicial do Efeito Suspensivo Automático 

 Quanto à questão de saber quando opera, concretamente, o efeito suspensivo previsto no n.º 1 do artigo 103º-A do CPTA, a lei, ao abrigo da redação dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, estipulava que “[a] impugnação de atos de adjudicação (...) faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”, levando a crer que seria a própria apresentação da petição inicial que faria suspender automaticamente o ato de adjudicação.

Alguns Autores (1) questionaram esta solução, levantando a hipótese de estar em causa uma “imprecisão do legislador”, que teria pretendido estabelecer um regime semelhante ao do n.º 1 do artigo 128º do CPTA, referente à proibição automática de execução do ato cuja suspensão se requeria em processo cautelar, em que a proibição só valeria no momento em que a entidade requerida recebesse o duplicado do requerimento inicial, ou seja, no momento da citação - segundo a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015.

A propósito, Margarida Olazabal Cabral (2) recorda que não se deve confundir os planos da suspensão dos efeitos do ato (que opera no momento do pedido de impugnação) e o da proibição da sua execução pela entidade demandada (que só valeria quando esta fosse citada). Contudo, ainda que tal assim deva ser, na prática não se afigura de grande efeito útil - isto porque se só com a citação a entidade demandada tem oportunidade de saber que está a ser alvo de uma ação de contencioso pré-contratual com efeito suspensivo, evidentemente que até esse momento continuará a executar o ato impugnado. Assim, não resulta daqui nenhuma utilidade para o demandante dessa suspensão “automática” que, supostamente, resultaria da simples apresentação da petição inicial.

Desta forma, e na falta de uma resposta esclarecedora à questão de saber “quais são as consequências de um ato de execução depois da entrada da ação, e antes da citação da entidade demandada” (3), surge a conclusão de que todos os atos praticados ao abrigo do procedimento pré-contratual anteriores à citação “deve[m] ter-se como legitimamente feito[s]” (4).

A revisão de 2019 ao CPTA, ao abrigo da Lei n.º 118/2019, veio, contudo, introduzir alterações quanto a esta questão. O novo n.º 1 do artigo 103º-A do CPTA estabelece que “as ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais seja aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”. 

O legislador veio, assim, promover uma redução do âmbito de aplicação do efeito suspensivo automático, que opera a dois níveis: (i) o efeito suspensivo automático produzir-se-á apenas quando esteja em causa a impugnação de um ato de adjudicação praticado no âmbito de um procedimento pré-contratual, no qual o Código dos Contratos Públicos demande a existência de um período de stand still e (ii) temporalmente, o efeito suspensivo automático apenas operará quando a ação de impugnação do ato de adjudicação seja intentada dentro desse mesmo período de stand still

Desta nova revisão legislativa resulta, então, e como bem aponta Marco Caldeira, que a instauração de uma ação urgente de contencioso pré-contratual só provocará um efeito suspensivo automático quando se preencham cumulativamente três condições: (i) a ação se destine à impugnação da decisão de adjudicação, (ii) o ato de adjudicação que se pretende impugnar tenha sido praticado num procedimento pré-contratual onde seja imposta a observância de um prazo de stand still entre a adjudicação e a celebração (ou o início da execução) do contrato - o que implica que esteja em causa um procedimento pré-contratual com publicidade internacional (artigos 95º, n.º 4, alínea a) e 104.º, n.º 2, alínea a) do Código dos Contratos Públicos) - e que a proposta adjudicada não tenha sido a única a ser apresentada nesse procedimento (artigos 95º, n.º 4, alínea d) e 104.º, n.º 2, alínea c) do Código dos Contratos Públicos) e (iii) a ação seja intentada no prazo de 10 dias úteis desde a notificação da decisão de adjudicação (artigos 95º, n.º 3 e 104º, n.º 1, alínea a) do Código dos Contratos Públicos).

(1) MARCO CALDEIRA, Estudos sobre o contencioso pré-contratual, AAFDL, Lisboa, 2017; e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A tutela “cautelar” ou provisória associada à impugnação da adjudicação de contratos públicos”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 115, Janeiro/Fevereiro de 2016; 

(2) e (3) MARGARIDA OLAZABAL CABRAL, “O contencioso...”, cit., página 57;

(4) RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A tutela...”, cit., página 19; 

 IV. Levantamento do Efeito Suspensivo Automático

Uma vez que este efeito suspensivo tem como característica a sua automaticidade, restará à entidade adjudicante (e aos contrainteressados), quando veja(m) a prática do ato de adjudicação suspensa por efeito da instauração de um pedido de impugnação do mesmo, suscitar o incidente de levantamento desse efeito suspensivo, nos termos de um verdadeiro requerimento processual, propulsor de um incidente processual. Neste sentido, Duarte Rodrigues Silva que explica ainda que “a configuração do levantamento do efeito suspensivo como um incidente processual a cargo da entidade demandada (ou dos contrainteressados) tem como primeiro resultado a sujeição destas partes processuais às regras impositivas dos ónus de alegação e prova a que se referem os artigos 342º, n.º 1, do Código Civil, 3º, n.º 1, 5º, n.º 1, 293º, n.º 1, 410º, 414º do Código de Processo Civil e, em especial, o artigo 103º-A, n.º 2, do CPTA/2015. Na falta de alegação de factos concretos (não se bastando a invocação de meros juízos conclusivos) e de prova da sua verificação (não bastando a mera alegação), não pode ser julgado procedente o incidente legalmente previsto”. 

Aquando da introdução do artigo 103º-A ao CPTA, duas questões surgiram acerca do levantamento do efeito suspensivo: (i) o prazo durante o qual esse incidente poderia ser requerido e (ii) os critérios para que o pedido de levantamento fosse procedente.

Relativamente à primeira questão, e dada a ausência de previsão expressa de um prazo para o requerimento do levantamento na redação da lei de 2015, suscitava-se o problema de saber se a entidade demandada e/ou os contrainteressados estariam sujeitos a algum prazo para desencadear o incidente do levantamento do efeito suspensivo e, se sim, qual seria.

A dúvida suscitava-se, sobretudo, por força da cláusula residual da alínea c) do n.º 3 do artigo 102º do CPTA, que estabelece um prazo supletivo de 5 dias para a prática de todos os atos processuais que não estejam sujeitos a um prazo específico.

Três vias de entendimento surgiram relativamente a esta questão. A primeira era a que defendia que o prazo aplicável seria de cinco dias, por força da tal cláusula residual da alínea c) do n.º 3 do artigo 102º do CPTA - era esta a posição defendida, inicialmente, por Pedro Melo e Maria Ataíde Cordeiro, autores que, entretanto, passaram a considerar que que da lei não se retiraria um prazo para o pedido de levantamento do efeito suspensivo. O segundo entendimento era o da aplicação ao pedido de levantamento do efeito suspensivo do prazo legal previsto para a apresentação de contestação, devendo ambos ser apresentados nos articulados no prazo de 20 dias previsto no artigo 102º, n.º 3, alínea a) do CPTA – posição sufragada por Rodrigo Esteves de Oliveira. Por fim, a terceira tese (e, na minha opinião, a correta) era a que considerava que o levantamento do efeito suspensivo poderia ser requerido a todo o tempo, dado que a lei não instituía qualquer prazo, não devendo ser o intérprete a fazê-lo, além de que faria todo o sentido permitir à entidade demandada e/ou aos contrainteressados reagirem contra o efeito suspensivo durante toda a pendência processo, sem dependência de prazo - tese defendida por Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Duarte Rodrigues Silva e Marco Caldeira, assim como pela jurisprudência (neste sentido, o Acórdão do TCA Sul de 04.10.2017, processo n.º 1329/16.1BELSB).

A controvérsia veio, contudo, a ser esclarecida com a revisão de 2019, que passou a prever, no n.º 2 do artigo 103º-A, que o levantamento do efeito suspensivo pode ser pedido “[d]urante a pendência da ação”, o que é dizer, a todo o tempo, sem sujeição a qualquer prazo preclusivo, dando razão à terceira tese acima referida (e defendida).

A segunda questão, contudo, afigura-se de maior relevância. A discussão acerca dos critérios exigidos para o levantamento do efeito suspensivo automático centrou-se principalmente na conjugação dos critérios estabelecidos pelo legislador, nos antigos n.º 2 e 4 do artigo 103º-A, quanto ao periculum

Resumidamente, o que sucedia era que o n.º 2 do artigo 103º-A do CPTA, depois de prever que, no pedido de levantamento do efeito suspensivo, a entidade demandada e os contrainteressados deveriam alegar que “o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos”, mandava o Tribunal, na decisão sobre este pedido, aplicar o “critério previsto no n.º 2 do artigo 120º” do CPTA, nos termos do qual uma providência cautelar “é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”. Por seu turno, o n.º 4 do 103º-A, como que ignorando a existência do critério constante do n.º 2, fixava, ele próprio, um critério diferente, dispondo que “[o] efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento”.

Evidentemente que esta desarmonia de critérios depressa suscitou dúvidas interpretativas sobre quais seriam, afinal, os critérios a atender e os prejuízos que deveriam ser levados em conta para que se determinasse o levantamento do efeito suspensivo automático (1).

Felizmente, a revisão de 2019 não deixou passar este problema, esclarecendo de forma bastante assertiva as dúvidas anteriormente surgidas. A antiga remissão constante do n.º 2 do artigo 103º-A para o critério previsto no artigo 120º, n.º 2 do CPTA desapareceu, e o levantamento do efeito suspensivo é agora tratado, unicamente, pelo n.º 4 do artigo 103º-A, que adota a anterior redação do n.º 2, prevendo que “[o] efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos”. É, assim, eliminado o duplo critério anteriormente consagrado, tornando o preceito de muito mais fácil compreensão e aplicação.

Ainda assim, e como Marco Caldeira adverte, a nova formulação legal não deixa de suscitar algumas dúvidas, nomeadamente quanto à compatibilização da mera exigência de existência de “grave prejuízo” para o interesse público para determinar o levantamento do efeito suspensivo com os casos em que os prejuízos para os interesses da entidade demandante sejam muito superiores. Efetivamente, as Diretivas parecem impor uma ponderação de interesses (artigo 2º, n.º 5 da Diretiva 2007/66/CE atende “a todos os interesses suscetíveis de serem lesados, bem como o interesse público”), não se compadecendo, assim, com uma “absolutização do grave prejuízo para o interesse público” (2).

(1) Dúvidas levantadas por Autores como RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A tutela...”, cit., páginas 23 a 25, DUARTE RODRIGUES SILVA, “O levantamento do efeito suspensivo...”, cit., páginas 11 a 13; MARCO CALDEIRA, Estudos..., cit., páginas 35 a 39; e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", 4.ª edição revista, Almedina, Coimbra, 2017, páginas 843 a 84;

(2) Neste sentido, DUARTE RODRIGUES SILVA, “O levantamento...”, cit., páginas 45 e 46;

 V. Conclusões 

Cabe-me, agora, tecer algumas considerações finais, mormente no que à revisão do CPTA de 2019 (na parte que aqui nos importa, entenda-se) diz respeito.

Por um lado, é inegável que o novo regime legal pretendeu um maior equilíbrio entre os diferentes interesses em jogo – entidade impugnante vs. entidade demandada –, tendo o legislador português procurado, até em maior dimensão daquela que lhe era imposta, ir ao encontro das preocupações sentidas ao nível da tutela que deve ser conferida aos intervenientes em procedimentos de contratação pública.

Por outro lado, não posso deixar de acompanhar a censura feita ao legislador por Autores como Mário Aroso de Almeia e Margarida Olazabal Cabral, quando afirmam que este optou pela solução mais fácil, mas menos corajosa e garantística, para o problema que se propunha resolver. Ou seja, perante a constatação do problema da excessiva e crónica morosidade dos Tribunais Administrativos, a solução encontrada não foi, mais uma vez, a de brindar os mesmos com mais meios para uma decisão mais célere, mas antes impor para a propositura da ação de impugnação do ato de adjudicação o prazo de dez dias do stand still, diminuindo ex lege o número de situações em que os Tribunais sequer são chamados a decidir, com prejuízo evidente para as garantias dos particulares. Como Aroso de Almeida afirma, com este novo regime o legislador reconhece que, “como não é possível aumentar a eficiência, a celeridade e a capacidade de resposta da jurisdição administrativa e fiscal” – no caso, na apreciação em tempo útil dos pedidos de levantamento do efeito suspensivo automático que são dirigidos aos tribunais pelas entidades adjudicantes –, a solução reside em libertar na maior extensão possível estas entidades da necessidade de pedir tal levantamento” (1).

(1) MÁRIO AROSO DE ALMEIA, “Breve apontamento sobre algumas alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos previstas na Proposta de Lei n.º 168/XIII”, páginas 72 e 74.

Luís Januário nº 58181


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